Medida de proteção pode ser imposta excepcionalmente sem a vontade da vítima dentro da Lei Maria da Penha
Questão pouca enfrentada pela doutrina e jurisprudência, diz respeito se a medida de proteção de urgência pode ser imposta, sem a vontade da vítima dentro da Lei Maria da Penha?
De um lado, temos a Lei nº 11.340.2006 (Lei Maria da Penha) prescrevendo que a medida de proteção de urgência poderá ser concedida, mediante pedido da vítima ou requerimento do Ministério Público (art. 19, da Lei nº 11.340.2006).
Noutro quadrante, a Lei nº 11.340.2006 (Lei Maria da Penha) nada fala expressamente (sendo silente nesse ponto), se o delegado de polícia pode representar pela imposição de medida protetiva e se o juiz pode de ofício conceder tais medidas protetivas, sem pedido da vítima.
Todavia, não podemos perder de vista que realmente pelo regramento jurídico, a Lei nº 11.340.2006 (Lei Maria da Penha) estabelece claramente que a medida de proteção poderá ser concedida pelo juiz, mediante pedido da vítima ou requerimento do Ministério Público. Essa é a regra a teor do que preconiza o art. 19 da indigitada lei:
“Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§ 1º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.
§ 2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
§ 3º Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.
§ 4º As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes. (Incluído pela Lei nº 14.550, de 2023)
§ 5º As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. (Incluído pela Lei nº 14.550, de 2023)
§ 6º As medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes. (Incluído pela Lei nº 14.550, de 2023)”
O legislador ordinário, a bem da verdade, perdeu a grande oportunidade de positivar ainda que excepcionalmente, a possibilidade de o delegado de polícia representar pela imposição de medida protetiva e do juiz de ofício conceder tais medidas protetivas, sem pedido da vítima. O ideal dentro da honestidade intelectual jurídica seria de “lege ferenda” se positivar essa possibilidade, mas até que isso ocorra, nos parece impositivo pensarmos em soluções paliativas protetivas em prol da mulher em situações excepcionais.
Alertamos nesse ponto que, a Lei nº 11.340.2006 (Lei Maria da Penha) e todo o arcabouço jurídico, em prol da violência de gênero no âmbito familiar ou doméstico gravita em favor de um sistema protetivo à mulher, mormente diante da vulnerabilidade presumida da mulher, até mesmo no que tange à interpretação[1] e os pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Lastreado nessa interpretação do sistema protecionista e da vulnerabilidade presumida da mulher, não se deve nem cogitar a eventual violação do sistema acusatório, pois o foco aqui é a proteção da vítima de violência doméstica ou familiar dentro do sistema acusatório, e não necessariamente a regra do ônus probatório, embora inegavelmente possa trazer reflexos negativos ao acusado agressor, a depender da situação.
Outro ponto importante a ser debatido é sobre a natureza jurídica da medida protetiva de urgência. Temos corrente doutrinária sustentando ser de natureza cautelar e outra corrente jurisprudencial sustentando ser a medida protetiva de urgência de natureza penal e natureza cível (tutela inibitória cível).
A discussão ganha mais colorido quando adentramos nesse tema de medida protetiva enfrentando as situações que envolvam ação penal privada, ação penal pública condicionada e ação penal pública incondicionada. O Superior Tribunal de Justiça[2] já decidiu que a medida protetiva independe de representação da vítima quanto à persecução penal (autonomia da medida protetiva[3]), bastando o pedido da vítima.
Com isso, no que toca a medida protetiva quanto as situações envolvendo ação penal privada e ação penal pública condicionada, o pedido da vítima (apenas quanto a medida de proteção de urgência), inclusive com a não manifestação (não representação criminal) pela persecução, através de representação criminal, poderá desencadear tão somente a medida protetiva de urgência. Agora as situações de medida protetiva de urgência envolvendo ação penal privada e ação penal pública condicionada, sem pedido da vítima daquela (medida protetiva), traz a problemática à tona, assim como nas ações penais públicas incondicionadas em que a vítima não faz o pedido da medida protetiva.
Por mais que se respeite a autonomia da vontade e autodeterminação da vítima nessas situações e da possível “inconveniência” da medida protetiva de urgência não desejada pela vítima, há casos que devemos ponderar até que ponto essa “vontade e autodeterminação” da vítima deve preponderar perante situações graves e excepcionais na violência de gênero no âmbito doméstico e familiar.
Pensemos na seguinte situação da vítima de violência de gênero no âmbito doméstico ou familiar: mulher refém de um ciclo constante de violência doméstica ou familiar, sem independência financeira, possuindo filhos em comum com agressor, onde a violência de forma gradativa só se intensifica e faticamente se percebe a necessidade dessa medida de proteção de urgência, sob pena da vítima correr risco de morte. Vamos agregar ainda a essas particularidades acima, os ingredientes da vítima ter receio fundado de retaliações do agressor e constrangimentos que a inibam de requerer medida, tais como de julgamentos familiares de toda ordem e até “instinto de sobrevivência” – por não ter condições de manter a si e sua prole – , razão pela qual acaba por não solicitar a medida de proteção urgente. Nesse mesmo exemplo, suponhamos que apenas o delegado de polícia ou o juiz saibam dessa situação, sem ter aportado ainda ao Ministério Público.
Vamos ignorar toda essa particularidade da urgência de medida protetiva e deixar a vida da vítima sob risco, apegado ao argumento de ingerência excessiva do Estado na vida privada da vítima, ainda que sua “vontade e autodeterminação” esteja “viciada ou refém da situação de dependência de todos os possíveis fatores” ou vamos permitir que o delegado de polícia represente pela medida protetiva de urgência ou o juiz de ofício venha impor a medida de proteção, em prol da mulher?
Excepcionalmente, preferimos seguir uma posição de vanguarda alicerçada no sistema protetivo, diante da vulnerabilidade da vítima de violência de gênero no âmbito doméstico ou familiar (art. 19, § 2º, da Lei Maria da Penha)[4], a se permitir que o delegado de polícia represente pela medida protetiva de urgência ou o juiz de ofício venha impor a medida de proteção, em prol da mulher. Pensar do contrário, é criarmos uma proteção inconstitucional deficiente e com hipertrofia do direito penal, que ignoraria o direito constitucional fundamentalmente à vida e à segurança pública.
Comugando dessa mesma posição, há o enunciado da Acadepol da Polícia Civil de São Paulo no sentido de que o delegado tem legitimidade para representar por Medida Protetiva de Urgência, aprovado no Seminário sobre a Lei 14.344/2022 (Henry Borel).
“Enunciado 1: O Delegado de Polícia, titular da investigação criminal, possui legitimidade para formular representação justificada ao Poder Judiciário com vistas à determinação de medida protetiva de urgência voltada a tutelar crianças, adolescentes ou mulheres vítimas ou testemunhas de violência doméstica ou familiar, sobretudo se vislumbrar potencial intimidação inibidora da livre manifestação de vontade da pessoa ofendida ou de seu representante”.
Cumpre destacar que, a Portaria DGP-26/2023 (art. 5º, § 5º) da Polícia Civil de São Paulo dispõe que os enunciados acadêmicos possuem caráter de orientação e servem como método de interpretação no processo decisório[5].
Das considerações finais
Por fim, como regra, a medida de proteção poderá ser concedida, mediante pedido da vítima ou requerimento do Ministério Público. Entretanto, excepcionalmente, sustentamos uma posição alicerçada no sistema protetivo, diante da vulnerabilidade da vítima de violência de gênero no âmbito doméstico ou familiar, a se permitir que o delegado de polícia represente pela medida protetiva de urgência ou o juiz de ofício venha impor a medida de proteção, em prol da mulher, já que pensar do contrário, é oportunizarmos uma proteção inconstitucional deficiente e com hipertrofia do direito penal estatal, que faria letra rasa ao direito constitucional fundamental à vida e à segurança pública.
Referências bibliográficas:
BRASIL. Lei nº 11.340.2006 (Lei Maria da Penha). Publicada no Diário Oficial da União de 8.8.2006.
__________STJ – 4ª Turma – REsp 1.419.421/GO – rel. min. Luis Felipe Salomão – j. em 11/2/2014 – DJe de 7/4/2014).
__________ STJ – 5ª Turma – AgRg no REsp 1.783.398 / MG – rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca – j. em 2/4/2019 – DJe de 16/4/2019.
___________STJ – 5ª Turma – RHC 106.214/SP – rel. min. Ribeiro Dantas – j. em 15/8/2019 – DJe de 20/8/2019.
[1] Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
[2] Precedentes do Superior Tribunal de Justiça: STJ – 4ª Turma – REsp 1.419.421/GO – rel. min. Luis Felipe Salomão – j. em 11/2/2014 – DJe de 7/4/2014). Na mesma linha: STJ – 5ª Turma – AgRg no REsp 1.783.398 / MG – rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca – j. em 2/4/2019 – DJe de 16/4/2019; STJ – 5ª Turma – RHC 106.214/SP – rel. min. Ribeiro Dantas – j. em 15/8/2019 – DJe de 20/8/2019.
[3]§ 5º As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. (Incluído pela Lei nº 14.550, de 2023)
[4]§ 2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
[5]Disponível em:«https://www.policiacivil.sp.gov.br/portal/ShowProperty?nodeId=/dipolContent/UCM_067178//idcPrimaryFile& » Acesso em 24 de novembro de 2023.