O art. 311[1], do Código Penal, que no Título X, Dos Crimes Contra a Fé Pública, no Capítulo IV, De Outras Falsidades, trata do crime de adulteração de sinais identificadores de veículo automotor, teve sensíveis modificações em 2023, por força da Lei n. 14.562/23, que entrou em vigor no dia 27 de abril de 2023, quando publicada no Diário Oficial da União.
E essas mudanças não se limitaram ao Código Penal, pois a figura típica do parágrafo 2º, III, equiparada ao caput do art. 311 em relação à pena, teve reflexos no Código de Trânsito Brasileiro, ao derrogar, ou seja, revogar parcialmente e de forma tácita, a causa de aumento de pena prevista no art. 298, II, do CTB[2], que incide quando o autor de crime de trânsito conduzir veículo automotor sem placas, com placas falsas ou adulteradas.
A primeira parte da causa de aumento de pena do art. 298, II, do CTB (veículo sem placas), subsiste, ou seja, continua em vigor, pois o tipo penal do art. 311, § 2º, III, do CP, não abrange veículo automotor ou correlato sem placas, mas alcança num tipo penal de conteúdo variado, misto, alternativo a conduta daquele que adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, mantém em depósito, desmonta, monta, remonta, vende, expõe à venda, ou de qualquer forma utiliza em proveito próprio ou alheio veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado.
Alguns exemplos são úteis, para facilitar a compreensão do tema:
O agente que incorrer, por exemplo, no crime de embriaguez ao volante (CTB, art. 306), ao conduzir veículo automotor com placas falsas, adulteradas, numeração do motor ou do chassi remarcada ou adulterada, responderá pelo crime de trânsito em concurso formal (CP, art 70), com o crime do art. 311, § 2º, III, do Código Penal, caso soubesse (dolo direto) ou devesse saber (dolo eventual) estar adulterado ou remarcado aquele sinal identificador.
É necessário que o agente tenha ou deva ter esse conhecimento, para que o delito do art. 311, do CP (crime contra a fé pública) se consume.
O agente, porém, não responderá pelo concurso de crimes se conduzia veículo automotor, elétrico, híbrido, reboque ou semirreboque, sem placas, sob influência do álcool, e incorrerá na figura do art. 306, do CTB, c.c. art. 298, II, primeira parte (sem placas), do CTB, ou seja, com a causa de aumento de pena, exatamente porque a falta de placas não foi abrangida pelo tipo penal do art. 311, § 2º, III, do CP, e a causa de aumento de pena do CTB, em relação à ausência de placas, permanece em vigor.
O agente, finalmente, responderá apenas pelo crime de trânsito, em concurso com crime contra o patrimônio, como furto (CP, art. 155), por exemplo, caso venha a subtrair veículo automotor e passe a conduzi-lo de imediato, sob influência do álcool ou de outra substância psicoativa, sem que haja elementos que demonstrem que o agente tinha ou devia ter conhecimento de que o veículo que conduzia tinha a numeração do chassi remarcada.
No exemplo acima (ausência de elementos que indiquem conhecimento da adulteração), imaginemos que o agente tenha antecedentes por dirigir embriagado (CTB, art. 306), mas não os tenha por furto (CP, art. 155), receptação (CP, art. 180), adulteração de sinais identificadores de veículo automotor (CP, art. 311) e não há elementos, nem mesmo indiciários, que indiquem que ele sabia (dolo direto) ou devia saber (dolo eventual) que o veículo tinha placas, numeração do motor ou do chassi adulteradas.
Imputar-lhe o crime do art. 311, § 2º, III, do CP, nessas circunstâncias, implicaria adotar a responsabilidade objetiva em matéria penal, que não é possível em nosso Direito Penal.
Num segundo exemplo (presença de elementos que indiquem conhecimento da adulteração), podemos imaginar caso concreto do agente que incorre em delito previsto no CTB, conduzia veículo com chassi remarcado e tinha antecedentes por receptação, furto, adulteração de sinal identificador de veículo automotor, havia sido anteriormente preso em flagrante em estabelecimento que receptava e desmontava / remontava, remarcava chassi, numeração do motor e outros sinais identificadores de veículos que tenham sido objeto de furto ou roubo.
Nesta hipótese, difícil sustentar que o agente não tinha ou não devia ter conhecimento da adulteração ou da falsidade. Assim, ele responderá por concurso de crimes: o delito de trânsito em que incorrer, mais o crime do art. 311, § 2º, III, do CP, em concurso formal, nos termos do art. 70, do CP.
A incidência da causa de aumento de pena do art. 298, II, do CTB, que subsiste em relação à ausência de placas do veículo automotor ou correlato é objetivamente simples, pois não é razoável que o sujeito conduza o veículo automotor ou correlato e depois alegue que não sabia que não tinha placas. Caberá ao agente, quando formular a alegação, o ônus de provar esse desconhecimento, para afastar a incidência da causa de aumento de pena do art. 298, II, do CTB, em relação à falta de placas.
A mudança trazida pela Lei n. 14.562/23, aparentemente restrita ao art. 311, do Código Penal, não foi constatada pelos atualizadores do site www.planalto.gov.br, na aba legislação / Códigos / Código de Trânsito Brasileiro, pois não foi lançada ainda nenhuma remissão no art. 298, II, do CTB, ao art. 311, § 2º, III, do CP, em face da derrogação ou revogação parcial havida, conforme consulta realizada no dia 24 de março de 2024, às 9h: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9503.htm.
[1] Art. 311. Adulterar, remarcar ou suprimir número de chassi, monobloco, motor, placa de identificação, ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, de semirreboque ou de suas combinações, bem como de seus componentes ou equipamentos, sem autorização do órgão competente: (Redação dada pela Lei nº 14.562, de 2023)
Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 1º – Se o agente comete o crime no exercício da função pública ou em razão dela, a pena é aumentada de um terço. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 2º Incorrem nas mesmas penas do caput deste artigo: (Redação dada pela Lei nº 14.562, de 2023)
I – o funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial; (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023)
II – aquele que adquire, recebe, transporta, oculta, mantém em depósito, fabrica, fornece, a título oneroso ou gratuito, possui ou guarda maquinismo, aparelho, instrumento ou objeto especialmente destinado à falsificação e/ou adulteração de que trata o caput deste artigo; ou (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023)
III – aquele que adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, mantém em depósito, desmonta, monta, remonta, vende, expõe à venda, ou de qualquer forma utiliza, em proveito próprio ou alheio, veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado. (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023)
§ 3º Praticar as condutas de que tratam os incisos II ou III do § 2º deste artigo no exercício de atividade comercial ou industrial: (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023)
§ 4º Equipara-se a atividade comercial, para efeito do disposto no § 3º deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive aquele exercido em residência. (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023)
[2] Art. 298. São circunstâncias que sempre agravam as penalidades dos crimes de trânsito ter o condutor do veículo cometido a infração: (…)
II – utilizando o veículo sem placas, com placas falsas ou adulteradas;