Resumo
O artigo analisa as consequências da decisão do Supremo Tribunal Federal que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal em quantidades de até 40 gramas. Desde o caráter vinculante da decisão até os limites estritos referentes ao porte de até 40 gramas ou ao cultivo de até seis plantas fêmeas, o texto examina os procedimentos aplicáveis a esses casos. Além disso, por meio de uma análise crítica, aborda a falta de clareza em aspectos como prescrição, retroatividade e a condição dos usuários como testemunhas, bem como a necessidade de adaptação das autoridades e instituições na fiscalização do uso e porte dessa substância psicoativa. Os resultados indicam a urgência de um marco regulatório claro e de uma discussão mais ampla sobre a política de drogas, ressaltando a fragilidade da interação entre os poderes Legislativo e Judiciário.
Descriminalização. Porte de maconha. Recurso Extraordinário nº 635.659. Tema 506. Política de drogas.
Introdução
A Suprema Corte do Brasil foi chamada a avaliar a constitucionalidade do crime de porte de drogas para consumo pessoal no Recurso Extraordinário nº 635.659 (Tema 506), que expunha diversas teses divergentes. Para Gilmar Mendes, que apresentou o voto condutor da tese, as sanções descritas no art. 28 da Lei 11.343/06 passaram a ter caráter exclusivamente administrativo, pois a punição criminal “estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos, bem como gera uma punição desproporcional ao usuário, violando o direito à personalidade”. Os ministros Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Rosa Weber também consideraram inconstitucional a criminalização, mas limitaram seus votos à maconha, objeto do recurso. Na sequência, o ministro Cristiano Zanin votou contrário a tese porque entende que a mera descriminalização contraria a razão de ser da lei, contribuindo para agravar problemas de saúde relacionados ao vício. O julgamento foi finalizado no dia 26 de junho de 2024, oportunidade em que o Plenário da Corte decidiu, por maioria de votos, que o porte da substância conhecida como “maconha”, quando realizado para consumo pessoal, não se afigura como uma conduta delituosa, devendo ser considerado um ilícito administrativo. Assim ficou decidido:
1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III); 2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei nº 11.343/2006 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei nº 11.343/2006 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença; 4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 , será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6. Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.” (STF – Plenário. RE 635.659-SP. Rel.: Gilmar Mendes. Julgamento: 26/06/2024).
A decisão mencionada levanta diversos questionamentos e dúvidas práticas que precisarão ser esclarecidos ao longo do tempo. A seguir, analisamos algumas dessas consequências, sem prejuízo de outras que certamente surgirão.
Consequências práticas imediatas em razão do RE 635.659-SP:
Como primeira consequência prática, o julgado apresenta caráter vinculante (CPC, art. 927, III) e descriminalizou exclusivamente os casos envolvendo o porte de maconha (Cannabis sativa) para uso próprio. Essa descriminalização aplica-se tanto aos procedimentos em fase de apuração, seja investigatória ou judicial, quanto àqueles em fase de execução penal, conforme disposto na Tese 1. É importante reforçar que, por exclusão (silêncio eloquente, diríamos), o porte para uso de outras substâncias ilícitas, como cocaína, crack ou heroína, permanece sendo conduta criminosa, punível penalmente nos termos do que disposto pelo artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas).
O julgado limita sua aplicação a situações envolvendo apreensões de até 40 gramas ou cultivo de no máximo 6 plantas fêmeas de Cannabis sativa (Tese 4). Dessa forma, qualquer fato que exceda esses parâmetros estará fora do alcance dos efeitos previstos na referida decisão, não se beneficiando da relativa presunção de uso pessoal estabelecida. Isso não significa que o operador extrairá sua conclusão sobre porte para comércio ou uso apenas com base na quantidade da substância apreendida. O que estamos afirmando é que a presunção de porte para uso demanda quantia não superior a 40g. E mesmo nesse caso a presunção poderá ser afastada se as circunstâncias concretas do fato indicarem a intenção de mercancia, sendo desde logo apontadas como exemplos dessa intenção: a forma de acondicionamento da droga; as circunstâncias da apreensão; a variedade de substâncias apreendidas; ou a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais, e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes (Tese 5). Deve-se notar que esse rol foi trazido pela própria ementa, oferecendo indicativos que orientem a análise dos casos, principalmente quando envolverem pequenas quantidades de maconha. Esta qualificação pode, inclusive, demandar a adoção de medidas invasivas, como sugerido na ementa, tais como: a plena possibilidade de a autoridade policial instaurar inquérito por portaria e representar pelo acesso pontual ao registro dos dados das conversas mantidas no aparelho celular, mesmo quando se tratar de apreensões menores que 40 gramas de maconha; e a possibilidade de realização de prisão em flagrante, sendo referido que a autoridade policial e seus agentes não estão impedidos de proceder a tal medida (Tese 5). Assim, por exemplo, em casos de reiteração de condutas, pela mesma pessoa, com apreensões repetidas de pequenas quantidades de maconha, inferiores a 40 gramas, pode ser considerada um fator relevante para afastar a presunção de porte para uso pessoal.
Em qualquer desses cenários, será imprescindível que a autoridade policial apresente uma justificativa detalhada para o afastamento da presunção de porte para uso pessoal, sendo vedada a utilização de critérios subjetivos ou arbitrários (Tese 6). Em caso de prisão em flagrante, essa justificativa deverá constar no próprio auto de prisão, que servirá de base para a avaliação do juiz na audiência de custódia subsequente (Tese 7).
O julgado estabelece que, mesmo quando a quantidade de droga apreendida for inferior a 40 gramas, é imprescindível a realização da apreensão do entorpecente e a notificação do autor do fato para comparecimento em juízo (Tese 3). Essa apreensão é necessária para garantir a verificação de circunstâncias que possam afastar a presunção relativa inicialmente estabelecida.
Além disso, o julgado afirma que a conduta do usuário de drogas não é considerada uma infração penal, mas sim um ilícito administrativo. Contudo, tal conduta poderá ensejar a aplicação das sanções previstas nos incisos I e III do artigo 28 da Lei nº 11.343/06 (Teses 1 e 2). Embora a ementa publicada levante diversas dúvidas acerca dos procedimentos previstos (Teses 1 e 2) e antecipe dificuldades na implementação plena das políticas públicas que visa promover, o Supremo Tribunal Federal esclareceu que, até deliberação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “a competência para julgar as condutas previstas no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais” (Tese 3). Assim, conforme a decisão do STF, o procedimento não penal destinado à apuração da conduta do usuário será de competência dos Juizados Especiais, “segundo a sistemática atual”, vedando-se a atribuição de quaisquer efeitos penais à sentença resultante (Tese 3).
Por fim, embora a conduta do usuário de drogas tenha assumido a natureza de ilícito administrativo, caso o sujeito ativo seja um adolescente, o ato deverá ser submetido à apreciação da Justiça da Infância e da Juventude, para a aplicação de medidas protetivas pertinentes.
A decisão do RE nº 635.659 (Tema 506) e crime de plantio, cultivo e semeio para uso próprio
A partir da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 635.659-SP, que reclassificou o porte de maconha para consumo pessoal como infração administrativa, pode-se vislumbrar duas correntes acerca de sua extensão para o tipo penal do § 1º do art. 28 da Lei de Drogas, que pune quem, para consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
Uma primeira corrente defende que o § 1º do art. 28 da Lei nº 11.343/2006 não deve ser automaticamente afetado pela decisão do STF, pois trata de uma conduta distinta: o cultivo de plantas destinadas à preparação de substâncias entorpecentes. Nesse sentido, a natureza jurídica do cultivo difere significativamente do porte de drogas, pois envolve a produção de substâncias, e não apenas a posse para consumo pessoal. O julgamento do STF limitou-se a tratar do porte de pequenas quantidades de maconha para uso próprio, enquanto o cultivo, mesmo que destinado ao consumo pessoal, traz riscos adicionais para a saúde pública e a segurança. A produção de entorpecentes aumenta a disponibilidade dessas substâncias no mercado ilícito, o que pode, direta ou indiretamente, alimentar o tráfico, ainda que em pequenas quantidades ou até de forma gratuita. Por essas razões, essa corrente sustenta que o cultivo deve ser tratado com maior rigor pelo Direito Penal, justificando a manutenção do § 1º do art. 28 como uma conduta criminalizada, mesmo após a decisão do STF.
Contudo, uma segunda corrente adota uma interpretação teleológica da decisão da Suprema Corte, enxergando campo fértil em favor da descriminalização do cultivo de maconha para uso pessoal, quando realizado dentro dos estritos limites estabelecidos pelo STF para o porte de drogas. Essa visão parte do princípio de que a decisão do STF, ao reconhecer a inconstitucionalidade da criminalização do porte de pequenas quantidades de maconha para consumo pessoal, deve ser interpretada de maneira abrangente, de forma a incluir também a descriminalização do cultivo, semeadura e colheita da planta para o mesmo fim. Ora, se o objetivo da decisão foi descriminalizar o uso pessoal de drogas, não haveria razão jurídica para criminalizar o cultivo de pequenas quantidades de maconha destinadas a esse mesmo fim. Afinal, o cultivo pessoal de plantas para uso próprio não oferece, necessariamente, os riscos sociais e à saúde pública que a produção em larga escala e o tráfico de entorpecentes apresentam. Nesse sentido, a conduta de plantar maconha para consumo próprio seria uma extensão natural da despenalização do porte, pois não se poderia exigir que o indivíduo, que já foi autorizado a portar pequenas quantidades, adquirisse a droga exclusivamente por meios ilícitos. A possibilidade de cultivo pessoal garantiria o acesso à substância sem a necessidade de recorrer a redes criminosas, o que poderia, de fato, contribuir para a redução dos efeitos deletérios do tráfico.
Assim, essa segunda corrente sugere que a interpretação do § 1º do art. 28 da Lei de Drogas deve ser flexibilizada, à luz da decisão do STF, para que o cultivo de plantas para consumo pessoal também seja descriminalizado. Isso exigiria uma revisão jurisprudencial que harmonize o entendimento sobre o porte de drogas com a prática do cultivo em pequena escala, reconhecendo que ambas as condutas, se destinadas ao uso pessoal, não apresentam uma ameaça suficiente à ordem pública para justificar a intervenção penal.
Adotada esta segunda corrente, falta definir o critério quantitativo para a conformação do espaço legítimo de semeadura, cultivo e colheita de maconha para uso pessoal. A análise do RE 635.659-SP nos fornece um parâmetro útil ao definir que se presume usuário, como regra geral, aquele que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo até 40 gramas de “Cannabis sativa” ou seis plantas fêmeas. Nesse contexto, a limitação do cultivo de até seis plantas fêmeas se justifica pela necessidade de estabelecer um controle objetivo que permita diferenciar o cultivo destinado ao uso pessoal daquele que poderia indicar a intenção de produção em larga escala, com possível desvio para comercialização ilegal.
A escolha de seis plantas como limite visa atender ao princípio da razoabilidade, garantindo que a quantidade cultivada esteja alinhada com as necessidades de um consumo moderado e pessoal. Quantidades superiores poderiam sugerir um excedente destinado a outros fins, como o tráfico, justificando a manutenção desse parâmetro para prevenir abusos e assegurar que o cultivo não ultrapasse os limites do uso privado. A fixação desse critério também se apoia na necessidade de segurança jurídica, permitindo que autoridades e usuários saibam com clareza os limites aceitáveis, reduzindo a subjetividade na análise de casos concretos e favorecendo a aplicação uniforme da lei.
Assim, a limitação de seis plantas fêmeas preserva o equilíbrio entre a descriminalização do uso pessoal e a prevenção de práticas ilícitas, mantendo uma linha clara que permite o controle social e estatal sobre o cultivo de substâncias entorpecentes.
Pontos de atenção e dúvidas da decisão do RE 635.659-SP
A decisão do Supremo Tribunal Federal que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, mesmo que restrita a pequenas quantidades, gera uma série de incertezas e lacunas que evidenciam a inadequação e as consequências de intervenções judiciais em temas tão complexos. O impacto dessa decisão suscita diversas questões práticas e jurídicas que ainda carecem de respostas claras. A seguir, destacamos algumas delas.
Em primeiro lugar, a decisão carece de clareza quanto à prescrição relacionada ao porte de maconha, uma vez que tal conduta não é mais tipificada como crime. Assim, torna-se imperativo discutir qual será o tratamento dos casos pendentes. Deverá ser aplicada a prescrição prevista no art. 30 da Lei, ou outro previsto em leis que tratam de infrações sanitárias? Vale lembrar que para sanções em que o legislador não tratou da prescrição, o STF mandou aplicar o prazo prescricional mínimo do Código Penal, qual seja, 3 anos. Essa solução não serve ao nosso caso, pois o art. 30 da Lei de Drogas anuncia prazo ainda menor!
Ademais, a decisão proferida possui efeitos ex tunc ou ex nunc? Deverá ela produzir retroatividade benéfica, ensejando a reanálise de casos outrora julgados? Nesse contexto, tal medida revela-se consonante com a busca pela concretização da efetividade do sistema de justiça?
Ademais, considerando que o autor da infração administrativa relacionada ao porte de maconha não é mais considerado criminoso, é pertinente questionar se tal indivíduo poderá ser convocado como testemunha em processos envolvendo o acusado de ter-lhe fornecido a substância entorpecente. Haverá a possibilidade de recusa em depor? E, se sim, como essa recusa se articula com a tipificação de falso testemunho, dado que sua conduta, antes criminosa, deixou de ser classificada como tal? A validade dos depoimentos de usuários em processos criminais também suscita questionamentos, especialmente em relação à possível alteração de sua condição psíquica em decorrência do uso da substância.
Outro ponto que deve ser destacado diz respeito a necessária preparação adequada das autoridades competentes para a fiscalização de indivíduos que conduzem veículos sob efeito de substâncias psicoativas, cuja conduta é tipificada no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, o que exigirá, também, a adaptação dos aparatos necessários para a realização dessa análise.
Não se pode esquecer que aquele que se apresenta em locais públicos em visível estado de alteração da consciência, devido ao consumo de maconha, poderá incorrer na contravenção penal prevista no artigo 62 da Lei das Contravenções Penais, contida no Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Este dispositivo não abrange apenas a embriaguez causada pelo álcool, mas também por outras substâncias de efeitos análogos. Esse contexto levanta a questão de como instituições privadas, como estabelecimentos de ensino, empresas e igrejas, devem abordar o uso de maconha em seus espaços. Podem entidades privadas, por meio de regras particulares, restringir o porte da maconha em seus recintos? Existe a possibilidade de justa causa para demissão ou punição disciplinar de colaboradores que utilizem a substância? E nos espaços públicos e de interesse social, como locais de votação e prédios do Poder Judiciário, é possível restringir o porte de maconha? A autoridade administrativa terá o poder de impor tais restrições ou será necessária legislação específica?
Por fim, no que se refere à competência legislativa, persistem incertezas quanto à possibilidade de estados e municípios instituírem normas que limitem o uso de maconha em ambientes públicos ou privados. Poderão ser aplicadas multas ou sanções por violações a tais normas, mesmo em um contexto de descriminalização do porte?
Todos esses pontos de dúvida apenas ilustram que o chamado ativismo judicial produz impactos sistêmicos imprevisíveis. Embora o Judiciário possa promover mudanças sociais, a centralização dessas decisões fragiliza o papel do Legislativo, que é o fórum apropriado para debater questões dessa natureza. Isso resulta em uma hipertrofia do Judiciário, que molda a Constituição de acordo com suas próprias convicções e afasta o poder do povo e de suas representações políticas na tomada de decisões que o afetem. O risco de uma “concentração excessiva de poder no Judiciário” se evidencia quando a sociedade é excluída do processo decisório, sugerindo que as escolhas políticas do povo se tornam menos relevantes diante das interpretações constitucionais dos tribunais.
Irrelevância do RE 635.659-SP para o crime do art. 33, § 2º, da Lei
Partindo da premissa de que a decisão no RE 635.659-SP estabeleceu que não configura infração penal o porte de até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas para consumo pessoal, qual a repercussão no crime previsto no art. 33, § 2º, da Lei de Drogas, que prevê pena de detenção de 1 a 3 anos, e multa de 100 a 300 dias multa para aquele que induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de drogas?
Deve-se levar em conta que este tipo penal é um crime autônomo, distinto da tipificação contida no art. 28, que trata do porte para uso pessoal. Assim, entendemos que, mesmo que o incentivo se refira ao uso de maconha dentro dos limites descriminalizados pela Suprema Corte (40 gramas ou seis plantas fêmeas), a conduta tipificada no art. 33, § 2º, continua sendo penalmente relevante.
Isso decorre do fato de o crime de induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso de drogas ser formal, consumando-se pelo simples ato de incentivar ou auxiliar, independentemente de a pessoa incentivada vir a consumir a substância ou de haver qualquer perigo concreto ou efetiva lesão. Portanto, ainda que a pessoa instigada não faça uso da droga, o crime está consumado no momento em que ocorre a ação de incentivo ou auxílio por parte do agente.
Tal entendimento segue a lógica adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema Repetitivo 901, que estabelece que, no crime do art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro, também se dispensa a necessidade de posterior lesão ou perigo concreto à segurança viária para sua consumação. Dessa maneira, se um agente incentiva que outra pessoa use maconha até o limite de 40 gramas ou empresta dinheiro para a aquisição dessa quantidade, sua conduta permanece criminosa, visto que a decisão no RE 635.659-SP não descriminalizou o ato de indução ou instigação, mesmo quando o incentivo está relacionado ao consumo pessoal dentro dos limites estabelecidos pela Corte.
Conclusão
Em conclusão, a decisão do Supremo Tribunal Federal de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal em quantidades inferiores a 40 gramas incorpora inovações relevantes, mas também expõe lacunas normativas e incertezas interpretativas que demandam escrutínio atento. A opção por descriminalizar exclusivamente a maconha, mantendo a tipificação penal para outras substâncias ilícitas, e a criação de uma presunção relativa de não criminalidade para o porte de pequenas quantidades introduzem novos contornos jurídicos que exigem prudência na sua aplicação. Além disso, a continuidade dos procedimentos investigativos e judiciais, bem como a manutenção das competências das instituições encarregadas de lidar com essas condutas, revela a necessidade de um equilíbrio cuidadoso entre a mitigação da repressão e a preservação da eficácia no controle do tráfico.
A decisão também instiga uma reflexão mais profunda sobre os impactos no enfrentamento ao ciclo operacional do tráfico de drogas e nos pilares de confiança e legitimidade do sistema de justiça penal em reprimir de maneira eficaz essa conduta criminosa. A flexibilização normativa acerca do porte de pequenas quantidades de maconha pode abrir espaço para ambiguidades interpretativas, comprometendo a capacidade repressiva do Estado diante de dinâmicas complexas, como a fragmentação das operações ilícitas. Ademais, ao permitir a presunção relativa de uso pessoal, a decisão pode inadvertidamente favorecer a instrumentalização dessa tolerância por organizações criminosas, que se valem da circulação pulverizada de pequenas quantidades como estratégia para minimizar riscos e diluir responsabilidades jurídicas. Assim, há o potencial de intensificar a sensação de ineficácia na repressão ao tráfico, corroendo a percepção de segurança e de previsibilidade no desempenho do sistema de justiça.
Por outro lado, a ausência de indicadores empíricos robustos que mensurem os reflexos da descriminalização sobre a saúde pública expõe uma fragilidade crítica na articulação entre as esferas de segurança e assistência social. Não se sabe ao certo se a medida contribuirá para a ampliação do consumo problemático, tampouco se haverá um aumento na demanda por serviços de tratamento e prevenção. Essa lacuna evidencia a necessidade de estudos longitudinais e políticas públicas integradas, sob o risco de que a decisão produza efeitos não antecipados, ampliando a distância entre os objetivos normativos e os resultados práticos. A operacionalização desse entendimento impõe desafios tanto para as forças de segurança quanto para o Judiciário, que terão de lidar com critérios flexíveis e circunstâncias variáveis para a configuração ou afastamento da presunção de uso pessoal. Em um contexto tão complexo, a decisão demanda cautela não apenas para evitar desarticulações institucionais, mas também para prevenir resultados indesejados, como a banalização do uso recreativo ou a instrumentalização dessa presunção por redes criminosas. A ausência de uma harmonização normativa entre os dispositivos legais e sua aplicação prática reforça a necessidade de interpretações criteriosas e coordenadas, sob pena de se comprometer a previsibilidade e a confiança na justiça penal.