1. Introdução
No Brasil foram deferidas mais de 500 mil medidas protetivas no último ano, conforme levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apesar disso, os índices de violência e feminicídio não têm diminuído: pesquisa de fevereiro de 2025 documentou que 37,5% das mulheres entrevistadas sofreram alguma forma de violência no último ano[1].
Vários fatores contribuem para o aumento da violência, como o fenômeno reconhecido como “backlash” (“retaliação” ao empoderamento das mulheres), o fato de que quase metade nas vítimas fica em silêncio, a incredulidade nas instituições públicas e o comportamento de alguns agressores que insistem em descumprir a lei.
Esses dados revelam a necessidade de aperfeiçoamento do sistema de proteção das vítimas, em especial quando há autores de violência que não se submetem sequer a uma decisão judicial de medidas protetivas.
A Lei n. 15.125/2025 incluiu o § 5º do art. 22 da Lei n. 11.340/2006 para estabelecer a possibilidade de cumulação da medida protetiva com monitoramento eletrônico, além da sua associação a dispositivo de segurança para a vítima. Esta Lei surge com essa finalidade de ampliar a efetividade das medidas protetivas de urgência, evitando que autores de violência consigam se aproximar e surpreender a ofendida com novos ataques de violência. Trata-se de uma medida salutar que une a evolução da ciência à evolução legislativa tendo como foco a proteção da mulher e seus dependentes.
Estabelece o novo dispositivo legal:
Art. 22. […]
§ 5º Nos casos previstos neste artigo, a medida protetiva de urgência poderá ser cumulada com a sujeição do agressor a monitoramento eletrônico, disponibilizando-se à vítima dispositivo de segurança que alerte sobre sua eventual aproximação.
O monitoramento eletrônico já estava previsto na nossa legislação para as seguintes situações:
- no curso de procedimento criminal, como medida cautelar criminal alternativa à prisão (CPP, art. 319, inciso IX), vinculado a um inquérito ou processo;
- no curso da execução penal associado à concessão de benefícios, como saída temporária, prisão domiciliar, regime aberto ou semiaberto, pena restritiva de direitos com limitação a lugares específicos ou livramento condicional (LEP, art. 146-B);
- durante a execução penal por crime contra mulher em razão da condição do sexo feminino, se houver saída do estabelecimento prisional (LEP, art. 146-E, incluído pelo Pacote Antifeminicídio).
- como política pública para mulheres em situação de violência (Lei n. 14.889/2024).
A este respeito, há menção ao monitoramento eletrônico na Lei n. 14.889/2024, que criou as Redes Estaduais de Enfrentamento da Violência contra a Mulher, a qual determinou que uma das ações obrigatórias nos planos de metas da redes devem ser a criação de “programa de monitoração eletrônica de agressores e acompanhamento de mulheres em situação de violência como mecanismo de prevenção integral e proteção estabelecidos pela […] Lei Maria da Penha” e a “expansão da monitoração eletrônica do agressor e disponibilização para a mulher em situação de violência de unidade portátil de rastreamento que viabilize a proteção da integridade física da mulher” (art. 3º, incisos IV e VI).
A inovação legislativa prevista no art. 22, § 5º, da Lei Maria da Penha amplia a possibilidade de monitoramento eletrônico, desvinculando-o de um procedimento criminal (como previsto no CPP) e da execução da pena (como previsto na LEP e Pacote Antifeminicídio).
Apesar da relevância da alteração legislativa, já se vislumbram questionamentos quanto à sua natureza, requisitos decisórios, prazo de vigência, eventual vinculação a dispositivo de segurança, recusa do agente, violação do dispositivo e ressarcimento de custos. Vejamos.
2. Da monitoração eletrônica
Empregando terminologia semelhante à da Lei de Execução Penal, o art. 22, § 5º, da Lei Maria da Penha prevê de forma genérica o “monitoramento eletrônico”, expressão que compreende não só a conhecida “tornozeleira” como quaisquer dispositivos que fiquem atrelados ao autor da violência e permitam monitorar sua movimentação, como pulseiras, tornozeleiras ou outros aparatos eletrônicos. Em um mundo digital, essa previsão genérica é importante porque compreende outros dispositivos que venham a surgir com o desenvolvimento tecnológico.
As linhas gerais do monitoramento estão disciplinadas na LEP e podem ser aplicadas, com os necessários ajustes, ao art. 22, § 5º, LMP. Assim, o agressor deverá ser cientificado de que não poderá remover, violar, danificar o dispositivo e, caso o faça, poderá ter consequências jurídicas com a decretação da prisão preventiva e responsabilização criminal.
Além do dispositivo atrelado ao agressor, a nova lei prevê também que a vítima terá um “dispositivo de segurança que alerte sobre sua eventual aproximação”.
Estabelece-se um perímetro de segurança que deve ser observado pelo autor da violência e, caso ultrapassado, o sistema é acionado. Neste momento, além de se comunicar as forças de segurança, a vítima poderá adotar cautelas para se refugiar em um local seguro.
Idealmente, todas as vítimas devem ser orientadas quanto aos procedimentos (ou plano de segurança individual) para que saibam exatamente o que fazer e como se proteger quando o sistema for acionado, em especial enquanto aguardam a chegada da polícia.
Em um país de dimensões continentais, é preciso ter consciência de que nem sempre o acionamento do dispositivo importará em um comparecimento imediato da polícia e a vítima não pode ficar exposta ao perigo.
Nos Estados Unidos, uma lei estadual do Tennessee de 2024 previu justamente o monitoramento por GPS de agressores de violência doméstica e dispositivos para alterar as vítimas[2]. Na Flórida, considera-se crime grave a remoção de dispositivo de monitoramento eletrônico, com possibilidade de prisão imediata (Estatuto da Flórida, § 843.23)[3].
3. Natureza jurídica: garantia de cumprimento das medidas protetivas de urgência
É possível antever três possíveis correntes interpretativas para a natureza jurídica do monitoramento eletrônico previsto na LMP: (i) medida cautelar criminal; (ii) medida acessória às medidas protetivas de urgência; (iii) medida protetiva de urgência autônoma.
Em nosso entendimento, o monitoramento eletrônico previsto no art. 22, § 5º, da Lei Maria da Penha não é nem uma medida cautelar criminal (ou mecanismo de fiscalização da execução penal) nem uma medida protetiva autônoma, mas uma garantia especial de cumprimento das medidas protetivas de urgência de proibição de aproximação da vítima ou de determinados lugares (como o local de residência, trabalho ou estudo da vítima ou familiares). Para chegar a essa conclusão é necessária uma interpretação literal, sistemática e teleológica. Vejamos.
Pela literalidade do dispositivo, afirma-se que a MPU poderá ser cumulada com o monitoramento eletrônico, indicando que ambos são intervenções distintas e que não seria possível a concessão deste monitoramento desconectado da existência de uma MPU. Na perspectiva sistemática, caso desejasse a lei ter criado uma modalidade de MPU, teria incluído a disposição em um dos incisos do art. 22, onde as diversas MPUs estão regulamentadas. Ao contrário, a inseriu a regulação nos parágrafos do art. 22, os quais estão tratando de mecanismos de garantia de cumprimento das MPUs: comunicação ao órgão responsável pela restrição ao porte de armas (§ 2º), auxílio da força policial (§ 3º) e aplicação da multa cominatória prevista no CPC – as astreintes (§ 4º).
Por outro lado, o art. 22, § 1º, já permite a cumulação da MPU com outras medidas previstas na legislação. Portanto, seria letra morta repetir que é possível cumular a MPU com uma cautelar criminal ou mecanismos de fiscalização da execução penal, pois isso é óbvio, já deriva do regramento do § 1º. Então a localização topográfica da regulação deste monitoramento eletrônico como um parágrafo do art. 22, fora da lista das MPUs e ao lado das medidas de garantia de sua eficácia, sinaliza de que se trata de uma nova medida de garantia de cumprimento das MPUs, um reforço da sua efetividade, de natureza diversa da das MPUs em si bem como da medida cautelar criminal do CPP ou a medida da LEP.
Finalmente, é relevante considerar a interpretação teleológica. Na Câmara dos Deputados, o PL 5427/2023 teve como justificativa inicial “A importância do instituto da medida protetiva bem como as divergências que gravitam em torno do tema”, citando-se pesquisa do CNJ que indica divergência entre os juízes sobre “a natureza jurídica e a forma de sua aplicação [das MPUs]”[4]. Ou seja, a proposta tem como ponto de partida o reconhecimento da controvérsia pelo sistema de justiça que considerava muitas MPUs como cautelares criminais. Indica-se uma intenção de superar essa controvérsia.
Ademais, no Senado Federal, o Parecer n. 18/2025 da Senadora Leila Barros, relatora no Plenário do Senado, afirma: “O novo dispositivo, então, seria no sentido de o juiz ordenar a monitoração eletrônica do agressor, como forma de garantir as medidas protetivas relacionadas à restrição de movimentação do agressor (incisos II, III e IV do art. 22)”[5].
Ou seja, o monitoramento eletrônico é criado como mecanismo de assegurar a efetividade da MPU de proibição de aproximação e contato com a mulher, tanto que se faz referência à possibilidade de integrá-lo à concessão de dispositivo de segurança à vítima para avisar quanto à aproximação indesejada. Da mesma forma que as MPUs indicadas nos incisos, e suas garantias de cumprimento previstas nos parágrafos do dispositivo, o monitoramento eletrônico previsto no art. 22, § 5º, da LMP possui uma natureza jurídica não criminal, derivada do dever de devida diligência do Estado Brasileiro previsto em tratados internacionais para a proteção da mulher em situação de violência.
A cautelaridade deste monitoramento eletrônico não está relacionada às finalidades de eventual processo penal, mas às finalidades das medidas protetivas: a proteção dos direitos fundamentais da mulher em situação de violência.
Da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência, extraem-se as seguintes conclusões:
- o monitoramento eletrônico está atrelado a medidas protetivas previamente determinadas;
- não se sujeita à instauração de inquérito policial ou processo criminal (pois não se confunde com a medida cautelar do CPP);
- o fato imputado ao agressor que justificou o deferimento da proteção pode ser atípico, desde que constitua um ato de violência;
- o arquivamento do inquérito ou absolvição não importa em imediata revogação do monitoramento.
Por fim, importante mencionar que o art. 22, § 5º, LMP não exclui a possibilidade de ser determinado o monitoramento eletrônico autônomo como alternativa à prisão (no curso de processo criminal, com base no CPP) ou na fase de execução penal (Pacote Antifeminicídio).
4. Requisitos decisórios
O monitoramento eletrônico importa em uma restrição justificada de direitos fundamentais em razão da necessidade de se proteger a vítima e seus dependentes.
Essa garantia adicional às medidas protetivas tem pressupostos mínimos que devem estar presentes:
- existência de medidas protetivas anteriormente deferidas e vigentes
- adequação do monitoramento às medidas concedidas
- necessidade do monitoramento no caso concreto
- proporcionalidade do monitoramento diante das circunstâncias
Por se tratar de uma medida acessória às medidas protetivas, tem requisitos específicos e deverá ser determinado nos casos em que, por si só, as medidas de proteção revelarem-se insuficientes ou diante de uma situação concreta de perigo.
No CPP, o monitoramento eletrônico existe justamente para as situações mais graves e está no final do rol das medidas alternativas à prisão do art. 319.
Assim, o monitoramento eletrônico não passa a ser uma regra obrigatória para todos os casos em que se defere medidas protetivas, mas uma medida adicional e necessária diante do caso concreto.
Desde a Lei 14.550/2023, houve uma relativa flexibilização de requisitos decisórios para as medidas protetivas: basta a alegação de violência pela mulher, em contexto de razoabilidade, que se presume o perigo, permitindo concessão da MPU (in dubio pro tutela). O prazo da determinação de proibição de aproximação e contato com a vítima pode eventualmente compreender períodos alargados, exatamente porque essa é uma restrição tangencial à liberdade pessoal (o sujeito passivo da medida protetiva pode exercer amplamente sua liberdade, exceto nos locais de risco à incolumidade da vítima.
O monitoramento eletrônico constitui uma restrição corporal substancialmente mais intensa que a MPU de proibição de aproximação e contato, bem como está carregada de estigma social, que certamente afetará a vida do suposto ofensor em todas suas esferas pessoal e profissional ao circular por locais públicos com o equipamento de monitoramento.
Esse estigma poderá também atingir os filhos comuns durante os períodos de visitas e mesmo a vítima, que muitas vezes prefere manter em sigilo o histórico de violência a que foi submetida. Não se pode esquecer que, em razão da submissão a que normalmente são submetidas as vítimas, muitas dependem economicamente do autor da violência e o uso de tornozeleira poderá importar em desproteção econômica.
O monitoramento eletrônico constitui um instrumento de cautela vinculado às medidas protetivas de urgência e, assim, condicionado à regra da proporcionalidade. Os requisitos de concessão do monitoramento eletrônico como garantia de eficácia da MPU derivam diretamente do princípio da proporcionalidade: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
A adequação está relacionada à pertinência da restrição de direitos com sua finalidade, que é, como indicado na exposição de motivos do projeto de lei perante a Câmara dos Deputados, “coibir a perseguição do agressor à vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher”[6].
Cabe o monitoramento eletrônico se houver a concessão das MPUs de proibição de aproximação da vítima ou de determinados lugares. Por exemplo, se ambos residem em Estados diferentes e a única MPU concedida foi a de proibição de contato (por e-mail ou mensagens), não há adequação na concessão do monitoramento eletrônico.
Com o avanço da tecnologia, é possível imaginar no futuro uma situação de monitoramento eletrônico para impedir o contato virtual do agente com a vítima, evitando-se condutas que causam grande dano emocional como o stalking virtual.
O segundo requisito é a necessidade. A redação do art. 22, § 5º, LMP já evidencia que não se trata de regra absoluta ao prever que a medida protetiva “poderá” ser cumulada com o monitoramento. Ou seja, não é toda MPU de proibição de aproximação e contato que automaticamente permite a concessão conjunta do monitoramento eletrônico. É necessário avaliar se há uma razoável expectativa de que a ordem judicial de proibição de aproximação seja suficiente à proteção da mulher ou se há uma dúvida razoável a exigir mecanismos de reforço. Tal análise irá derivar do próprio contexto relacional, do histórico das violências, sua intensidade e frequência, e dos mecanismos de proteção que eventualmente a vítima já tenha. Assim, ordinariamente, o monitoramento eletrônico se insere em um degradê de intervenções restritivas de direitos, como um passo a mais além da proibição de aproximação isolada e um passo antes da decretação da prisão preventiva.
Por exemplo: se a mulher reside em um condomínio com segurança privada, em que a possibilidade de fornecer a decisão judicial à equipe de segurança já seria suficiente para assegurar o não ingresso no ofensor nas proximidades do local de residência da mulher, provavelmente não haveria necessidade de haver um monitoramento eletrônico para esse mesmo fim, pois há outra medida menos gravosa de idêntica efetividade. Essa argumentação do degradê de medidas de intervenção não significa que não seja possível a concessão do monitoramento eletrônico no primeiro requerimento de MPU, quando a gravidade da conduta já permite avaliar um risco elevado e baixo prognóstico de alinhamento à proibição judicial, apenas sinaliza que haverá um ônus argumentativo quanto à sua necessidade.
Finalmente, deve-se avaliar a proporcionalidade em sentido estrito. Aqui, analisa-se o impacto do contexto de violência na incolumidade física e psicológica da mulher, a gravidade da conduta praticada e o risco de reiteração. Mais que uma avaliação de gravidade criminal do ato de violência, trata-se de avaliação do risco – um conceito já destacado no art. 19, §§ 4º e 6º, incluídos pela Lei n. 14.550/2023, como o objeto da cognição das MPUs. Busca-se, em última análise, prevenir a ocorrência de novos episódios de violência à mulher, os quais, eventualmente, poderiam escalar para um feminicídio. A consideração do formulário nacional de avaliação de risco torna-se uma ferramenta de extrema relevância (Lei n. 14.149/2021 e Recomendação Conjunta n. 05/2020 – CNJ e CNMP), bem como de eventuais estudos psicossociais disponíveis.
Enquanto a concessão da MPU de proibição de aproximação e contato é marcada por uma aplicação forte do princípio in dubio pro tutela (porque a restrição de direitos é tangencial), a instalação de monitoramento eletrônico deve ser reservada a situações de maior gravidade/risco (porque a restrição é substancialmente mais gravosa). Deve exigir um nível cognitivo mais intenso e uma maior sensibilidade no controle dos prazos.
O monitoramento eletrônico também poderá ser determinado diante do descumprimento de medidas protetivas de urgência, como uma medida alternativa à decretação da prisão. Nesse sentido, decidiu o STJ:
“as medidas impostas encontram-se devidamente fundamentadas e são adequadas ao caso concreto, haja vista que, houve descumprimento das medidas protetivas fixadas para proteção da integridade física e psicológica da ex-companheira do recorrente. Segundo registrado, o juízo singular manteve as medidas protetivas e aplicou, de forma fundamentada, medidas cautelares, entre elas o monitoramento eletrônico, para a proteção física e psicológica da vítima . Ausência de constrangimento ilegal”.
(STJ – AgRg no RHC 198636/GO, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, j. 09/09/2024)
5. Autonomia em relação ao processo criminal
O monitoramento eletrônico, enquanto uma garantia para a efetividade das medidas protetivas, carrega a mesma autonomia: independente de tipificação, investigação e processo.
Vale registrar que o art. 86, § 4º da LEP permite a transferência do condenado por VDFCM que tenha praticado novos atos de ameaça à mulher para estabelecimento penitenciário distante da residência da mulher; e o art. 152, parágrafo único, da LEP permite ao juiz determinar ao condenado por VDFCM que esteja em limitação de final de semana o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação. Ambas normativas (aliadas ao monitoramento eletrônico do art. 146-E da LEP) indicam que a fase de execução penal deve incorporar uma visão de proteção à mulher em situação de violência doméstica. Todavia, mesmo após o término do cumprimento da pena, se ainda persistir uma situação de risco, poderá haver o monitoramento da LMP, art. 22, § 5º.
No caso de arquivamento do inquérito policial ou de sentença absolutória não há impacto imediato para o monitoramento, que está atrelado unicamente à efetividade das medidas protetivas. Aliás, a possibilidade de concessão/manutenção da MPU após o arquivamento é reconhecida pelo Enunciado 64 do FONAVID e Enunciado n. 44 da COPEVID. Excepcionalmente, se o arquivamento ou absolvição decorrer de reconhecimento categórico da inexistência da violência ou da autoria, essa decisão faz coisa julgada no cível (cf. CPP, arts. 66-67), impedindo a concessão da MPU e, portanto, do monitoramento eletrônico como garantia de cumprimento, salvo se houver outras formas de violência que justifiquem a medida
6. Prazo de duração
Não há prazo de duração para o monitoramento eletrônico, que se sujeita à mesma regra de reavaliação periódica das medidas protetivas. Aplica-se o disposto no do art. 19, § 4º, LMP de que a medida vale enquanto necessária para eliminar o risco.
Assim, consideramos equivocado aplicar o limite máximo da prisão preventiva de 90 dias (art. 316, parágrafo único, CPP), mas nada impede que se adote um parâmetro temporal para reavaliação da necessidade do monitoramento
Por se tratar de medida mais restritiva e com forte impacto para o agente, o monitoramento pode ser revogado na vigência das medidas protetivas, mantendo-se as medidas protetivas menos severas. Nada impede, outrossim, que revogado o monitoramento este seja restabelecido diante de novos fatos.
Vale mencionar precedente em ação penal originária perante o STJ, em que Desembargador foi acusado de crime de estupro de vulnerável, e o tribunal manteve as medidas cautelares de afastamento do cargo e de monitoramento eletrônico mesmo após mais de um ano de seu deferimento inicial[7]. Considerando a gravidade da restrição, uma boa prática consiste em reavaliar periodicamente a necessidade de manutenção do monitoramento eletrônico (e da própria MPU). O prazo de 90 para a reavaliação do monitoramento eletrônico parece-nos, em princípio, um parâmetro razoável (mas não obrigatório, como já mencionado)
7. Cumulação com dispositivo de segurança
O dispositivo de segurança para a vítima tem por finalidade melhorar sua proteção, pois não há como se garantir, em todos os casos, o comparecimento imediato da polícia diante da aproximação do agente. Trata-se de um fator a mais de segurança, altamente recomendável, mas não impeditivo do monitoramento. Assim, entendemos que a lei não desejou condicionar o monitoramento à tal dispositivo, mas explicitou a possibilidade.
É possível que na Comarca exista programa de monitoramento eletrônico, mas não exista dispositivo de segurança à mulher; ou ainda que exista dispositivo de segurança (para a mulher acionar a polícia em emergência), mas tal dispositivo não esteja interligado ao sistema de monitoramento e, portanto, não permita avisar da aproximação. Nessas situações, a finalidade do monitoramento – que é uma central controlar quanto à não aproximação do ofensor de determinados lugares, como a residência, local de trabalho ou estudo da vítima – mantém sua adequação e necessidade, inclusive para contatar a mulher (v.g., por celular), ou ainda para se registrar um eventual descumprimento da MPU a ser posteriormente comunicado ao juiz. Se a medida segue sendo útil à proteção da mulher, é possível sua concessão independentemente da vinculação ao dispositivo.
Deve-se reconhecer que a norma traz uma diretriz de criação e estruturação desses programas de dispositivos de segurança integrados com o monitoramento eletrônico (como cenário ideal de proteção à mulher), mas sua não existência não deve impedir conceder a proteção que já é possível com o monitoramento sem integração com o dispositivo de segurança à vítima, dentro do leque de intervenções existente.
O monitoramento eletrônico e a existência de dispositivo em poder da vítima constituem importantes fatores de segurança (que se contrapõem aos fatores de risco) e – associados a outros mecanismos – podem inibir a evolução da violência. Nesse sentido manual para profissionais desenvolvido em Portugal, no qual consta[8]:
AVALIAÇÃO e GESTÃO DE RISCO EM REDE
Manual para Profissionais – AMCV
Fatores de Proteção
As medidas de proteção da vítima e de contenção do agressor podem incluir uma variedade de mecanismos de prevenção da continuidade criminosa, tais como:
. aumentar a vigilância policial na residência da vítima/sobrevivente;
. vigilância policial aos agressores, nomeadamente através de pulseira eletrônica;
. dispositivos portáteis de segurança, tais como alarmes e teleassistência;
. câmeras de vídeo-vigilância colocadas nas residências das vítimas/sobreviventes;
. articulação estreita entre as organizações de apoio às vítimas/sobreviventes e o sistema policial e judicial;
. medidas de coação eficazes e adequadas, que determinem o afastamento do agressor, quer da vítima/sobrevivente e das suas crianças, quer dos locais que as mesmas frequentam (trabalho, casa, escolas, outros);
. agravamento das medidas de coação no caso de violação;
. programas de intervenção com agressores;
. encaminhamento para Casa de Abrigo nas situações de alto risco;
. A deslocalização da vítima/sobrevivente, que poderá implicar a mudança completa de identidade.
8. Recusa do agente e violação do dispositivo
O artigo 22, § 2º, LMP utiliza o termo “sujeição do agressor a monitoramento eletrônico” para demonstrar que não se trata de um ato circunscrito à sua vontade.
Caso o agressor se recuse a colocar o dispositivo, sua conduta poderá justificar a decretação da prisão preventiva com fundamento no art. 313, II, CPP, já que a medida menos gravosa se revelou insuficiente para evitar o comportamento reticente do agressor.
Há, ainda, a situação do agente que inicialmente se sujeita ao monitoramento eletrônico, mas posteriormente: rompe ou danifica o dispositivo; ignora o limite territorial e se aproxima da vítima.
Na primeira hipótese, em que ele retira, danifica, inutiliza o aparelho poderá ser advertido ou ter sua prisão preventiva decretada com fundamento no art. 313, III, CPP, além de responder por crime de dano ao patrimônio público (art. 163, III, CP). É ainda possível a aplicação de multa cominatória, cf. art. 22, § 4º, da LMP.
A medida adotada pela autoridade judiciária deverá ser proporcional à conduta do agente. Imagine-se, por exemplo, que o agente deixe de carregar o aparelho porque tardou a chegar em casa em razão do trânsito. Nesta hipótese, uma advertência será suficiente. Contudo, se o agente deliberadamente danificar o aparelho para conseguir se aproximar e intimar a vítima, a prisão preventiva é medida necessária.
Na segunda hipótese, em que o agente se aproxima da vítima ou rompe o limite territorial estabelecido, estará configurado o crime do art. 24-A da Lei Maria da Penha, que também poderá ser cumulado o crime de dano ao patrimônio público.
9. Ressarcimento dos valores pelo agressor
Um dos maiores desafios para a implementação do monitoramento eletrônico é o elevado custo para o Estado. Estima-se que cada dispositivo gere um valor mensal aproximado de R$200,00 mensais por agente, com variações por Estado. No Projeto de Lei 06/2024 em que se pretende transferir o custo do equipamento para o condenado, fez-se uma estimativa de R$18.956.800,00 para as 92.984 pessoas que usam o dispositivo.
Na hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher, se consideradas todas as 540.255 medidas protetivas deferidas em um ano (Anuário FBSP 2024) com custo mensal de R$200,00 por ofensor (se todos tivessem o monitoramento eletrônico), haveria um custo superior a 1,2 bilhão de reais por ano, muito superior ao orçamento do Ministério das Mulheres de 95,2 milhões para o programa Mulher Viver sem Violência.
Portanto, um tema sensível para a sustentabilidade deste programa é avaliar suas fontes de custeio. Nesse sentido, os §§ 5º e 6º do art. 9º da LMP, introduzidos pela Lei n. 13.871/2019, estabelecem a possibilidade de que os custos dos dispositivos de segurança de monitoramento, para a segurança das vítimas, sejam ressarcidos pelo agressor, sem importar indiretamente em ônus ao patrimônio da mulher ou de seus dependentes.
10. Considerações finais
Sem dúvidas o novo monitoramento eletrônico com regramento não criminal coloca novos desafios à dogmática jurídica, especialmente a preocupação constante de não erosão das garantias tradicionais associadas às intervenções que até então eram exclusivas da seara criminal, que não equivalem a um “punitivismo vazio”. Por outro lado, a situação excepcional de violência contra a mulher experimentada no contexto brasileiro, um dos países mais violentos do mundo às mulheres, igualmente exige respostas mais assertivas.
Há que se tomar as cautelas necessárias que estabeleçam um equilíbrio entre a não arbitrariedade com o suposto ofensor, sem comprometer a finalidade maior de proteção de direitos fundamentais, tendo como norte hermenêutico a diretriz do art. 4º da Lei Maria da Penha, em relação à finalidade legal de cumprimento do dever de devida diligência na proteção às mulheres em situação de violência. No conflito entre direitos, há um em maior que deve ser irremediavelmente preservado: a vida!
[1] FBSP. Pesquisa Visível e Invisível, 5ª ed., 2025.
[2] KARNBACK, Jordam. Tennessee enacts law requiring GPS tracking for all domestic violence offenders. 2024.Disponível em: https://newschannel9.com/news/local/tennessee-enacts-law-requiring-gps-tracking-for-all-domestic-violence-offenders. Acesso em: 22.04.2025.
[3] Disponível em: https://codes.findlaw.com/fl/title-xlvi-crimes/fl-st-sect-843-23.
[4] CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL n. 5427/2023. Deputado Gutemberg Reis. 08/11/2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2357744&filename=PL%205427/2023
[5] SENADO FEDERAL. Parecer n. 18/2025 – PLEN/SF. Senadora Leila Barros. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9921605&ts=1743022678895&disposition=inline
[6] CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL n. 5427/2023. Deputado Gutemberg Reis. 08/11/2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2357744&filename=PL%205427/2023
[7] STJ, QO na Pet n. 15.819/DF, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Corte Especial, j. 19/4/2023.
[8] Tradução livre. AMCV – Associação de Mulheres contra a Violência. Avaliação e Gestão de Risco em Rede: Manual para Profissionais. Lisboa: AMCV, 2013, p. 61. Disponível em: https://www.pgdlisboa.pt/docpgd/files/1436798180_gestao_risco_emar.pdf. Acesso em: 24 abr. 2025.