Abordamos, na semana passada, os danos relacionados a veículos (roubos, furtos, etc) em estacionamentos. Recebemos, ao longo da semana, indagações variadas sobre fatos semelhantes. Buscaremos, com brevidade, respondê-las neste espaço.
Conforme dissemos, a empresa que oferece local presumivelmente seguro para estacionar assume obrigação de guarda e vigilância, o que a faz civilmente responsável pelos furtos de veículos lá ocorridos (STJ, REsp 49.071). A regra, porém, não vale, como se poderia supor, apenas para as empresas de estacionamento, mas para quaisquer pessoas jurídicas que disponibilizem, aos seus clientes, vagas para estacionar, ainda que gratuitas.
A empresa de supermercado que oferece estacionamento fica obrigada a indenizar os danos sofridos por seus clientes. Assim, pelo assalto em estacionamento de supermercado responde a empresa (STJ, AgRg no Ag 100.32.). Em trágico assalto à mão armada iniciado dentro de estacionamento coberto de hipermercado, em que ocorreu tentativa de estupro com morte da vítima fora do estabelecimento, a jurisprudência, corretamente, responsabilizou o shopping pelo dano, enxergando, aí, dever de prestar segurança aos bens e à integridade física do consumidor (STJ, REsp. 419.059). Pouco importa, para a atribuição da responsabilidade à empresa que disponibiliza o estacionamento, que o mesmo seja gratuito ou haja cobrança. Consolidou-se o entendimento no sentido de que a gratuidade do estacionamento (supermercado, por exemplo) não afasta a obrigação de indenizar, pois há interesse da empresa em dispor da facilidade para atrair clientela. Daí decorre o dever de guarda e vigilância (STJ, REsp. 50.502).
Cabe lembrar, à luz do Código de Defesa do Consumidor, que o art. 17 equipara aos consumidores “todas as vítimas do evento”. Portanto, quem sofre um dano, como o furto de um carro, é consumidor por equiparação: “A jurisprudência deste Tribunal não faz distinção entre o consumidor que efetua compra e aquele que apenas vai ao local sem nada despender. Em ambos os casos, entende-se pelo cabimento da indenização em decorrência do furto de veículo” (STJ, REsp. 437.649). Diferente não é, nem poderia ser, a situação dos hotéis. Havendo dano, a responsabilidade é do estabelecimento, a menos que prove que houve culpa exclusiva do hóspede. Nesse sentido têm se colocado as decisões judiciais: “Responsabilidade civil. Hotel. Roubo no estacionamento. Dever de vigilância e guarda. Excludente de força maior não caracterizada” (STJ, Resp. 227.014). Responde civilmente o hotel pelo roubo do veículo de hóspede, ainda que tenha sido praticado com violência, à mão armada. Como ponderamos anteriormente, não valem as restrições constantes de placas, cartazes, ticket’s, que exonerem o hotel – ou qualquer empresa – de responder pelos danos acontecidos.
Mesmo os hospitais, se oferecem estacionamento para os veículos dos pacientes – ou de seus familiares – podem responder pelos danos. Ainda que o serviço não seja cobrado, a tendência da jurisprudência é imputar ao hospital a responsabilidade pelo ressarcimento de eventuais danos havidos. Os tribunais já tiveram oportunidade de analisar a hipótese: “Furto de veículo em estacionamento de hospital. Aplicação da Súmula 130, segundo a qual ‘a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento” (STJ, REsp. 73.243).
A solução caminha no mesmo sentido das anteriormente apontadas, se é o empregador quem disponibiliza aos seus empregados determinado espaço para estacionamento, oferecendo-lhes, presumivelmente, a segurança daí decorrente. Desse modo, a “empresa que permite aos seus empregados utilizarem-se do seu estacionamento, aparentemente seguro e dotado de vigilância, assume dever de guarda, tornando-se civilmente responsável por furtos de veículos a eles pertencentes ali ocorridos” (STJ, REsp. 195.664). Em caso julgado no mês passado, o STJ consignou que nesta hipótese – furto de carro empregado em estacionamento disponibilizado pelo empregador – a indenização pelo dano material sofrido deve ser buscada na Justiça do Trabalho (STJ, CC 82.729).
Cada vez mais comuns nas grandes cidades, o serviço de manobristas vinculados a bares ou restaurantes tem gerado conflitos nos tribunais. O consumidor, ao entregar as chaves do carro ao manobrista, firma contrato de depósito. A boa-fé, aliada aos demais princípios que regem as relações de consumo, deve permear o contrato. Havendo dano, a empresa responde. Desse modo, “a entrega de veículo em confiança a manobrista de restaurante caracteriza contrato de depósito e, como tal, atrai a responsabilidade do estabelecimento comercial pelo furto, ainda que na via pública, impondo-lhe o dever de indenizar o proprietário pelos prejuízos daí decorrentes” (STJ, REsp. 419.465). O dever de guarda, em casos tais, decorre da entrega do veículo, pelo cliente, ao empregado do estabelecimento – ou a quem, aparentemente, se apresenta como tal.
Em todos os casos acima referidos, deve-se entender que o risco do negócio é da pessoa jurídica, não do cliente. A consagração legal da teoria do risco – pelo parágrafo único do art. 927 – foi uma das grandes inovações do atual Código Civil. Algum tempo passará até que a jurisprudência, sob o influxo dos casos concretos, trace os contornos da cláusula geral, definindo, ainda que com certa flexibilidade, o seu conteúdo normativo.
A norma em questão está assim redigida: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. A responsabilidade fundada na teoria do risco, no Brasil, é objetiva, prescindido do elemento culpa. Em outros países, como a Itália, foi adotada, a respeito do tema, a responsabilidade por culpa presumida, a teor da qual imputa-se a culpa ao causador do dano, ficando ele livre da reparação se conseguir provar que não foi culpado. Entre nós, em nosso sistema jurídico, ainda que tal prova se faça, haverá dever de indenizar, eis que na responsabilidade objetiva a prova da ausência de culpa em nada modifica a situação do causador do dano.
É possível, em termos históricos, conectar culturalmente a teoria do risco a autores franceses – especialmente L. Josserand – que, no final do século XIX, percebendo a insuficiência da culpa para fazer frente a certos danos (particularmente aqueles derivados dos acidentes de trabalho, que ficavam sem reparação diante da necessidade de comprovação de culpa), passaram a fundamentar a responsabilidade civil não na culpa, mas no risco. A partir dessa idéia – pensada, como dissemos, no final do século XIX para situações específicas – difundiu-se a noção de responsabilidade objetiva para inúmeros outros casos.
Para concluir essa coluna, tão cheia de fatos tristes e agressivos, cabe um pouco de suavidade. Conta-se que Mário Quintana, o admirável poeta, certa vez foi convidado para fazer uma palestra no interior do Rio Grande do Sul. Aceitou. O secretário municipal de cultura, muito cerimonioso, indaga se o poeta tem preferência por algum modelo de automóvel para ir buscá-lo. O poeta responde:
– Marca não, a cor sim. Azul.