De acordo com a orientação dominante – na qual se incluem o STF e o STJ – a Constituição Federal admite a possibilidade de a pessoa jurídica figurar como sujeito ativo de crime. Uma controvérsia se instala, no entanto, quando o fato envolve pessoa jurídica de direito público autora de poluição.
A Lei nº 9.605/98, ao dispor sobre a punição da pessoa jurídica, estabelece que a responsabilização civil, administrativa e penal tem lugar em decorrência de atos ordenados pelo representante legal ou contratual no interesse ou benefício da entidade.
Inicialmente, destacamos haver uma diferença na relação existente entre a lei e as pessoas físicas e jurídicas de direito privado e entre a lei e o poder público. No primeiro caso, a lei transcende os indivíduos e os entes privados e representa a vontade do Estado na relação entre particulares. No segundo caso, a lei representa a própria vontade do Estado; não lhe é transcendente, mas inerente. Quando o Estado atua, o que se dá por meio dos órgãos da Administração Pública, o faz vinculado à sua própria vontade manifestada por intermédio da lei.
Mas qual é a vontade do Estado? Resumidamente, podemos afirmar que o Estado atua para garantir o bem comum por meio da manutenção da ordem e da criação de condições para que os indivíduos atinjam seus próprios fins de acordo com a ordem pré-estabelecida. Ou seja, o Estado não é um fim em si; atua sempre visando a um fim que lhe é superior.
Daqui retornamos à disposição da Lei nº 9.605/98 e indagamos: seria possível, dada a finalidade do Estado, um ente estatal agir no seu interesse ou benefício?
Há quem sustente que a omissão da Constituição e da Lei nº 9.605/98 em diferenciar, quanto à responsabilidade penal, as pessoas jurídicas de direito privado e de direito público não autoriza a conclusão de que ambas podem se submeter à pena criminal. Isto porque se trata de entes cuja natureza e propósitos não se confundem, e, por isso, não podem receber o mesmo tratamento, especialmente na esfera penal. Se o Estado não é um fim em si, mas atua com propósito que lhe transcende, não é possível que entidades públicas sejam equiparadas às privadas quando se trata de analisar suas finalidades.
Além disso, a punição criminal das pessoas jurídicas de direito público seria inadequada, pois em tais entidades, constituídas como meio para que o Estado atinja seus objetivos, seus dirigentes não atuariam, nos termos do art. 3º da Lei nº 9.605/98, “no interesse ou benefício” da entidade. Se assim o fizessem, haveria abuso de sua função e desvio de finalidade, acarretando a punição dos próprios dirigentes. Seria, ademais, absurdo admitir que o Estado pudesse de alguma forma se beneficiar da prática de um delito.
Para esta corrente, pesa também o fato de que não se poderia admitir o Estado na qualidade de delinquente, não só porque seus fins se pautam sempre pela legalidade como em virtude de ser o próprio Estado o titular do ius puniendi, ou seja, a condenação o forçaria a aplicar a pena em si mesmo. E nessa situação haveria um efeito inusitado: o Judiciário, que condenaria o Estado criminoso, consequentemente se inseriria na órbita da criminalidade.
E mais: a reprimenda constituiria um ônus contra a própria sociedade, pois, independentemente da que fosse aplicada, a responsabilidade recairia sobre o Estado.
São, por exemplo, defensores da tese de que a pessoa jurídica de direito público não pode sofrer punição criminal Gilberto e Vladimir Passos de Freitas Crimes contra a natureza. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001
Em outro extremo se encontram aqueles que sustentam positivamente essa possibilidade porque as normas que disciplinam a responsabilidade penal da pessoa jurídica (Constituição Federal e Lei nº 9.605/98) não excepcionam quanto às de direito público, devendo ambas receber tratamento isonômico. Afinal, se a lei não impõe barreiras, é defeso ao intérprete fazê-lo.
Ademais, se o Estado se lança em atividades por meio de pessoas jurídicas, nada impede que tais entidades venham a delinquir. Neste particular, aliás, pode-se afastar o argumento de que os dirigentes da entidade de direito público não agem em benefício ou interesse dela, pois muito comum a constituição de pessoas jurídicas pelo Estado com a finalidade de atuar na esfera econômica, disputando mercado com o setor privado.
Adotada esta segunda orientação, cabe-nos esclarecer que nem todas as penas elencadas nos arts. 21Art. 21. (...) I - multa; II - restritivas de direitos; III - prestação de serviços à comunidade. a 23Art. 23. (...) I - custeio de programas e de projetos ambientais; II - execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III - manutenção de espaços públicos; IV - contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas. da Lei nº 9.605/98 são aplicáveis à pessoa jurídica de direito público. Pode-se estabelecer que, enquanto a multa é sempre aplicada, as penas restritivas de direitos não têm incidência indiscriminada, especialmente quando o crime é cometido no âmbito de pessoa jurídica vinculada à administração direta, como pelo próprio Município, por exemplo. Neste caso, não cabe considerar a imposição de suspensão de atividades, interdição de estabelecimento e notadamente proibição de contratar com o Poder Público. Já a pena de prestação de serviços à comunidade, a nosso ver, pode ser aplicada integralmente, pois nada impede que o ente público seja obrigado a adotar uma das medidas elencadas no art. 23 da Lei nº 9.605/98.
No tocante às sociedades de economia mista, o STJ, no RMS 39.173/BA admitiu, ainda que indiretamente, a responsabilidade penal. No julgado, em que o tribunal tratou da possibilidade de punição autônoma da pessoa jurídica – ou seja, independente dos dirigentes – a autoria delitiva recaía na PETROBRAS, à qual se imputava crime de poluição (art. 54 da Lei nº 9.605/98) durante a implantação de um gasoduto.
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