Prezado leitor,
Segue outra história – rigorosamente verídica, como a primeira (Homicído sem cadáver: um crime sem fim…) -, que trata, desta feita, da imediata prisão decorrente de condenação pelo tribunal do júri, mas não pelo prisma da soberania dos veredictos (artigo 5º, inciso XXXVIII, “c”, da Constituição Federal)Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: (...) c) a soberania dos veredictos;, conforme decidiu o STF no caso do goleiro Bruno Fernandes de Souza, conhecido como “goleiro Bruno” (HC 139.612/MG), e sim por uma perspectiva um pouco diferente, preponderantemente probatória/probabilística. Também, aproveita-se o ensejo para uma breve incursão pelos institutos da prisão domiciliar e do crime continuado, a par de algumas referências a ardis e/ou emboscadas processuais. Advirto, novamente, que os nomes das pessoas envolvidas foram trocados, local e data omitidos. As frases e termos entre aspas em itálico, por suas vezes, reproduzem literalmente excertos dos autos judiciais.
Ademir Caiado, 44 anos, e Jair Caiado, 50 anos, eram irmãos. Pessoas simples e pacatas, viviam da lavoura e da criação de animais na zona rural. O quinhão de terra onde nasceram e moravam sozinhos havia sido herdado de seus antepassados. Era o “mundo” deles. Somente iam à cidade quando estritamente necessário. Solteiros, tinham um ao outro e isso lhes era suficiente. Daí veio a Barragem. E com ela a cupidez. A represa que se formou com a construção da usina hidrelétrica valorizou as terras na região. Todos queriam ter uma propriedade banhada pelo lago. Quanto mais água, melhor. Não tardou para que vizinhos e parentes cobiçassem as terras dos irmãos Caiado, como eram conhecidos.
Um primo deles, Salviano Braga de Queiroga, 68 anos, e seu filho, Éverton Braga de Queiroga, 36 anos, propuseram a Ademir e Jair dois alqueires de terra, sem acesso à água, em troca de um alqueire “que chegasse até a água da barragem”. Os irmãos Caiado cogitaram aceitar a permuta, mas desistiram. Inconformado, Salviano dizia “em tom ameaçador” que era “muito homem para muita coisa…”, e falou a Éverton que não resolveriam essa questão “enquanto não matassem Ademir e Jair” e que “se ele, Éverton, pagasse cinquenta mil para matá-los não era nada”, já que as terras valiam muito mais. Salviano, então, perguntou a dois de seus empregados, Ednaldo Rufino dos Santos, 34 anos, e Leomar Justino Gomide, 17 anos, que trabalhavam para ele como vaqueiros e roçando pasto, “se eles tinham coragem de matar Ademir e Jair”. Ednaldo respondeu que “teria coragem de fazer pelos cinquenta mil reais”, enquanto Leomar disse que se arrumassem as armas eles “fariam sim o serviço”. Éverton, após afirmar que “seria fácil arrumá-las”, saiu por um momento do local onde se encontravam e retornou com elas. Entregou uma cartucheira, cano serrado, calibre 28, “com oito cartuchos”, ao Leomar, e um revólver calibre 38, “com dez munições intactas”, ao Ednaldo. Decidiram que na segunda-feira próxima matariam Ademir e Jair.
Chegado o dia, Leomar e Ednaldo trabalharam normalmente. Ao entardecer, pegaram uma canoa de madeira disponibilizada por Salviano e se dirigiram à casa dos irmãos Caiado. Leomar “levava sua arma de fogo, tipo cartucheira, na mão e ao se aproximar da casa a escondeu em sua cintura no cós de sua calça, sob a camiseta que trajava”. Ednaldo, por sua vez, “levava sua arma de fogo tipo revólver 38, na cintura escondida sob suas vestes”. No trajeto, Leomar e Ednaldo “combinaram quem mataria quem; estavam bastante tranquilos e nenhum dos dois havia feito uso de bebida alcoólica”.
Hospitaleiros, sem suspeitar e muito menos imaginar o que estava para lhes acontecer, Ademir e Jair convidaram seus algozes a entrar na casa. Ofereceram café, o que foi aceito por Leomar e Ednaldo. Quando “Ademir foi coar o café, Ednaldo foi atrás para matá-lo”. Ficaram na sala Leomar e Jair “assistindo à televisão” e conversando. Decorridos alguns minutos, Ednaldo “sacou do revólver que trazia na cintura e apontou para a cabeça de Ademir, momento em que Ademir lhe pediu ‘não faz isso comigo, não’”. Ednaldo respondeu: “que não tinha mais jeito não” e atirou na cabeça de Ademir, que caiu no chão de barriga para baixo, derrubando na queda um banco que estava ao seu lado. A bala passou através da mandíbula e se alojou próxima à nuca de Ademir. Ednaldo avançou e desferiu mais um tiro no meio da coluna vertebral de Ademir, e mais outro na cabeça dele. O projétil desse último disparo entrou por trás da orelha esquerda e atravessou o cérebro, alojando-se na parte superior do crânio de Ademir. Nesse instante, Jair, ao ouvir os tiros, “levantou-se”, e Leomar rapidamente “sacou a arma de fogo que trazia em sua cintura e efetuou um disparo contra a cabeça de Jair”, que caiu de costas no sofá com “as pernas próximas, entreabertas, apoiadas no chão e os braços esticados ao lado do corpo”. Massa encefálica jorrou do crânio de Jair. Leomar imediatamente correu à cozinha, onde havia sangue respingado por toda a parede, para encontrar-se com Ednaldo, que olhava “para o corpo de Ademir, a fim de certificar-se que estava morto”. Visto Ademir morto, Leomar “retornou para a sala” e atirou mais duas vezes na direção do peito de Jair. Errou o alvo, as balas atingiram a região próxima do ombro esquerdo. Em todo caso, o primeiro tiro na cabeça já tinha produzido, em decorrência de traumatismo cranioencefálico, a morte de Jair. Missão cumprida, Leomar disse a Ednaldo: “vamos, vamos embora” e ambos “saíram correndo e retornaram à fazenda de Salviano”, para quem contaram que “o serviço estava feito, ou seja, que já haviam matado os dois irmãos”. Salviano disse que “eles não poderiam ficar por ali” e os levou em uma caminhonete para a cidade.
No dia seguinte, os corpos de Ademir e Jair foram encontrados já “iniciando putrefação, com ovos de mosca nos cabelos”, devido ao forte calor, enquanto em outro local da cidade Éverton se encontrava com Leomar e Ednaldo. Éverton chegou logo perguntando “e a macaquinha?”, uma alusão à sua “arma de fogo – espingarda tipo cartucheira”. Tinha ido buscá-la. Conversaram sobre o “pagamento pelo serviço feito”. Os cinquenta mil reais seriam pagos em duas vezes, “ou seja, seriam vinte e cinco mil reais para serem divididos entre Leomar e Ednaldo e posteriormente mais vinte e cinco mil reais que também dividiriam”. Salviano entrou em contato e ao telefone disse “que havia arrumado um pouco de dinheiro”. A entrega se daria na rodoviária. Entretanto, apenas R$ 2.350,00 foram entregues a Leomar e Ednaldo. Dividido o dinheiro entre eles, Ednaldo viajou para o seu estado de origem levando consigo o revólver calibre 38 utilizado para matar Ademir: um presente de Éverton.
Não demorou quinze dias para que Ednaldo retornasse, a fim de cobrar o valor restante. Salviano o evitava. Desligava o telefone “na cara” de Ednaldo e exigiu que ele “fosse embora, dizendo que se ele fosse preso, ele (Salviano) e Éverton também seriam…”. Ednaldo respondeu que “se pagasse a quantia combinada pela prática do crime iria embora…”. Diante disso, Salviano marcou um encontro em uma sorveteria, onde alegou “que não dispunha de tal quantia ainda, mas que arrumaria o dinheiro”. Não cumpriu a promessa. Dias depois, mandou um recado a Ednaldo: “que não tem dinheiro mais para ele não”. Da mesma forma, Éverton, quando cobrado, dizia “que não tinha dinheiro”.
Todavia, as razões e circunstâncias que envolveram as mortes de Ademir e Jair já apontavam Salviano e Éverton como os principais suspeitos. Eles eram os únicos interessados na morte dos irmãos Caiado. As ameaças de Salviano e as desavenças por causa das terras eram do conhecimento de toda a família. Então, Salviano, para despistar, ao mesmo tempo que se esquivava de Ednaldo, dizia à polícia que suspeitava dele e de seu outro empregado, Leomar, indicando-os como “os autores do crime de homicídio contra Ademir e Jair Caiado em virtude de ambos estarem desaparecidos”. Salviano apresentou diversas fotografias de Ednaldo e Leomar ao delegado, para “ajudar nas investigações”. Aos parentes, falava “que foram os capangas dele que mataram o Ademir e o Jair”. Éverton também incriminava Ednaldo e Leomar.
Ednaldo, que havia cometido a imprudência de regressar à cidade para cobrar de Salviano e Éverton o restante do dinheiro prometido, foi localizado e preso. O adolescente Leomar, por sua vez, que sequer se preocupou em fugir ou se esconder, também foi encontrado e capturado. Ambos, Ednaldo e Leomar, confessaram que haviam matado Ademir e Jair por determinação e mando, mediante promessa de recompensa, de Salviano e Éverton.
Pedida e decretada a prisão temporária de Salviano e Éverton, a polícia conseguiu alcançá-los em outra cidade, frustrando uma incipiente tentativa de fuga. Agora, todos, mandantes e executores, estavam presos. Não por muito tempo…
No decorrer do processo, antes mesmo de encerrada a instrução preliminar – quando o judiciário decide se remete, ou não, o caso ao tribunal do júri, para julgamento -, Salviano alegou um suposto problema de saúde e foi solto, sem que tivesse sido submetido a exame médico-legal. A bem da verdade, a juíza não o soltou, mas, sim, substituiu a prisão preventiva pela domiciliar, que, segundo a lei, consiste no recolhimento do acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial. De qualquer modo, dá no mesmo. Na prática, como Salviano não era um acusado célebre, e tampouco havia sido preso em uma dessas operações policiais sobre as quais se voltam a atenção e o interesse da imprensa e da sociedade, a prisão domiciliar não restringiu a sua liberdade de locomoção: o oficial de Justiça, em certa ocasião, foi uma vez à fazenda e seis vezes à residência de Salviano, não logrando encontrá-lo. Estava viajando.
Dizem que a Justiça é cega. Se não for, parece que é cínica.
Éverton fugiu da cadeia; e Leomar – que tinha passagem anterior pela polícia por ter cometido outro crime com violência, conforme ele mesmo havia confessado: “já matou outra pessoa antes deste fato”, um latrocínio (roubo seguido de morte) –, sumiu no mundo, depois de seis meses internado. Liberado, nunca mais se teve notícias de seu paradeiro.
A liberdade de três (Salviano, Éverton e Leomar) dos quatro envolvidos no crime, depois que se logrou prendê-los, provocaram revolta e clamor social. Parentes em comum das vítimas e dos réus Salviano e Éverton fizeram camisetas com fotos de Ademir e Jair, bem como confeccionaram cartazes pedindo e implorando por Justiça. Ao final do processo, em petição dirigida à juíza, extravasaram sua dor e angústia, deixando implícito que, para eles, a ausência de Justiça equivalia a tornar insepultos os cadáveres Ademir e Jair:
(…) Após a terrível encomenda de duas mortes de seus parentes o Sr. SALVIANO foi dormir tranquilamente, para somente ir na (sic) casa do vizinho (…) no dia seguinte pedir para cuidar das galinhas, porcos e vacas e DEIXOU SEUS PARENTES (VÍTIMAS) LITERALMENTE JUNTANDO BICHOS!
(…) o crime é de uma barbárie sem tamanho envolvendo famílias e vizinhos de fazenda por míseros um ou dois alqueires de terras à margem do lago.
(…) A irmã das vítimas salienta ainda que não há nenhum valor econômico que valia a vida de um ser humano; quanto mais a dor de perder dois irmãos, e encontrá-los já em decomposição dentro de sua própria casa, sem terem ao menos um velório digno, tamanha crueldade de Salviano Braga de Queiroga e Éverton Braga de Queiroga, que prometeram dinheiro considerável R$ 50.000,00 para Ednaldo e o menor, que com absoluta certeza nunca puseram as mãos (nessa quantia).
(…) Valendo ainda dizer que a escritura da terra de Salviano revela ser ele dono de MAIS DE CINQUENTA ALQUEIRES (216 hectares) em terras vizinhas a das vítimas, não tendo AMBIÇÃO que se justifique.
(…) A punição há de ser exemplar, digna de fazer refletir SALVIANO quase setenta anos que sequer, na condição de PAI, com vivência de larga experiência, orientou seu filho ÉVERTON; ao contrário, enveredaram os dois na seara brutal do crime, achando-se acima do bem, do mal e da justiça (a qual clamamos primeiramente pela Justiça Divina) e “in casu”, especialmente pela Justiça Criminal que fará valer o rigor da norma penal aplicável.
(…) Salviano fomentou o crime e participou efetivamente, fornecendo (…) as ARMAS, O DINHEIRO, A FUGA E A CANOA PARA IREM ATÉ O LOCAL DO CRIME para ceifarem brutalmente e sem nenhuma piedade as vidas de dois irmãos inocentes, trabalhadores, enquanto Salviano DORMIA EM CASA feliz e satisfeito.
Salviano e Éverton reagiram a essas palavras e sentimentos com gracejos, considerando-as uma “acusação de luxo”. De qualquer forma, o desapontamento e a súplica expostos pelos familiares das vítimas não tiveram a ressonância pretendida. Apenas Ednaldo continuou preso.
Salviano, para que Ednaldo se retratasse, ou seja, voltasse atrás no que havia dito acerca do pagamento e promessa de recompensa recebidas para matar os irmãos Caiado, pagou o advogado dele; quitou as suas despesas na cadeia e lhe forneceu cigarros. Em troca desses “favores”, Ednaldo passou a inocentar Salviano.
Salviano e Éverton valeram-se, ainda, de uma artimanha jurídica. Recorreram da decisão de pronúncia que os sujeitou ao julgamento pelo tribunal do júri, enquanto Ednaldo e o seu advogado – pago, frise-se, por Salviano – permaneceram inertes, ou seja, não recorreram. Isso resultou no desmembramento do processo, de modo que um dos processos, tendo Salviano e Éverton como réus, foi remetido à instância superior (Tribunal de Justiça) para apreciação do recurso por eles interposto, ao passo que o outro, no qual Ednaldo ficou sozinho como acusado, teve como destino o imediato encaminhamento ao júri, para julgamento.
O propósito e a intenção de Salviano e Éverton eram evidentes: fazer com que Ednaldo fosse julgado primeiro. Esperavam que com a condenação de Ednaldo os parentes e a sociedade se dessem por satisfeitos. A repercussão e a comoção diminuiriam. Assim, quando chegasse a vez deles (Salviano e Éverton) serem julgados, as chances de eventual absolvição seriam maiores.
A manobra não deu certo. Talvez Salviano e Éverton tenham subestimado a prova constante dos autos e a repulsa social aos graves crimes em que estavam implicados. Todos foram condenados, embora em julgamentos distintos. Ednaldo a 25 anos e seis meses de prisão. E vinte meses mais tarde, Salviano a 27 anos e dois meses de prisão, e Éverton – mesmo foragido – a 29 anos e três meses.
Solto, Salviano compareceu ao seu julgamento. E, embora condenado, não foi preso. No que concerne ao cumprimento da pena, ele saiu do tribunal do júri tão inocente quanto entrou, pela porta da frente, e junto com jurados, amigos e familiares das vítimas. Da comprovação do crime não se seguiu a aplicação da pena.
Nosso sistema judicial tem encarado com extremo ceticismo a convicção do jurados sobre a culpa do acusado. Apela às consequências que esse convencimento teria se fosse incorreto (condenação de um inocente), para adiar a aplicação da pena. A condenação de Salviano pelo tribunal do júri, pois, seria uma condição necessária, mas não suficiente, para sua prisão. Como ele recorreu da decisão, outros órgãos do Poder Judiciário – que figuram num plano mais elevado: tribunais de segunda instância (TJ) e superiores (STJ e STF) -, poderiam anulá-la, submetendo Salviano a outro julgamento. Sim, é possível que alguma falha processual ou engano possa ter acontecido no julgamento.
Ocorre que invalidar uma sessão de julgamento do tribunal do júri é uma situação excepcional, não se presumindo a existência de defeitos e irregularidades processuais. Por outro lado, no tribunal do júri, os jurados são juízes do fato. Tomam conhecimento e refletem sobre a natureza do crime, provas, indícios, confissões, circunstâncias, máximas de experiência, presunções, entre outros elementos de convicção contidos no processo, sendo “um erro pensar que os juízes tinham prazer em condenar. ‘Eles o fazem no cumprimento do seu dever, mas não o fazem quando têm dúvidas’” (Schirach, Ferdinand Von. Crimes. RJ: Record. 2011, pág. 112). E nos crimes dolosos contra a vida – como o homícidio -, compete exclusivamente ao tribunal do júri declarar o acusado culpado ou inocente. Nenhum outro tribunal (TJ, STJ, STF) pode inocentá-lo. No máximo, sujeitá-lo, por uma única vez, a novo julgamento, caso considere a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. Em suma, é possível estimar a chance do acusado ser absolvido, quando recorre da decisão condenatória: zero.
Dessa forma, deixar em suspenso a culpa do acusado reconhecida pelo tribunal do júri, ou seja, a verdade dos fatos, demonstrada, inclusive, “para além de qualquer dúvida razoável”, até que desembargadores e/ou ministros sobreponham o seu carimbo, chancelando-a, importa em fazer uma má suposição. Leva em consideração argumentos/juízos de autoridade que não influirão e nem somarão peso de evidência ao convencimento inicial acerca da culpa ou inocência do acusado. Contraria o nosso bom senso.
Daí porque, mantida a liberdade de Salviano, mesmo depois de condenado a quase três décadas de prisão, familiares e amigos da vítima indagavamEssa declaração e as indagações foram feitas na presença e dirigidas diretamente ao autor, logo depois do julgamento. Não constam dos autos judiciais.: “Como assim? Ele vai voltar para casa? Mas ele ‘pegou’ mais de 27 anos? Esperamos tanto tempo para o julgamento e não vai acontecer nada?”. Difícil esclarecer. Protestavam: “O pior é que, devido ao parentesco, teremos que continuar convivendo com o Salviano no seio de nossa família, como se Ademir e Jair não tivessem sido mortos injustamente por ele!”. Impossível explicar.
O ensinamento do célebre Cesare BeccariaJurista e filósofo italiano (1738-1794). Autor da obra Dos Delitos e Das Penas, um clássico do Direito Penal. foi reiteradamente relembrado: “quanto mais a pena for rápida e próxima do delito, tanto mais justa e útil ela será”. De nada adiantou.
Nesse meio-tempo, os defensores de Salviano retiraram muitas vezes o processo criminal do cartório, mantendo-o em suas casas e/ou escritórios por longos períodos, totalizando aproximadamente 627 dias. Para a lei, essa conduta pode constituir infração ético-disciplinarArt. 34, inciso XXII, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB) - Constitui infração disciplinar: (…) XXII - reter, abusivamente, ou extraviar autos recebidos com vista ou em confiança. e até crimeArtigo 356 do Código Penal - Inutilizar, total ou parcialmente, ou deixar de restituir autos, documento ou objeto de valor probatório, que recebeu na qualidade de advogado ou procurador: Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa.: retenção abusiva de autos. No meio forense, muitos chamam isso de estratégia; e a leniência judicial na restituição dos autos serve como desculpa. Funciona como um elixir dotado de efeito mágico ou miraculoso para aliviar a consciência. Brada-se: a culpa é do judiciário.
Decorridos aproximadamente 4 anos e seis meses do júri, o tribunal de justiça confirmou a condenação de Salviano e de Éverton, embora tenha reduzido a pena de ambos em mais de 9 anos. A pena de Salviano passou para 18 anos de prisão e a de Éverton para 19 anos e seis meses. Para diminuir a pena, considerou-se que as mortes de Ademir e de Jair ocorreram ao mesmo tempo, no mesmo lugar, e de igual maneira (v.g. produzidas mediante emprego de arma de fogo), de modo que o assassinato de um deles seguiu imediatamente o do outro, perfazendo, dessa forma, um único crime, definido pela lei como continuadoCódigo Penal, art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.. Dois crimes transformados, por ficção, em um. E um crime implica uma pena, conquanto passível de aumento.
Em todo caso, nada mudou. Éverton, assim como o adolescente Leomar, está para a Justiça – quiçá apenas para ela –, em lugar incerto e não sabido. Mais um mandado de prisão que se junta a milhares – que se estima no Brasil em mais de 300.000 – aguardando cumprimento. E Salviano permanece em prisão domiciliar.
Meses atrás encontrei num centro comercial uma parente das vítimas – e do réu Salviano, sendo todos primos entre si -, que havia sido uma aguerrida assistente de acusação no caso. Perguntei sobre o processo, e tive a impressão de que ela não mais se importa com a situação processual de Salviano, ou melhor, que ela não mais se importa com Salviano.
Lá se vão mais de 8 anos desde que Ademir e Jair Caiado morreram…