Regida pela Lei 8.666/93, a licitação tem o propósito de garantir que os vínculos contratuais estabelecidos entre o poder público e terceiros sejam regidos pela isonomia e sejam resultado da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública. É o que se extrai do art. 3º, que ainda atrela o processo e o julgamento da licitação aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e a outros correlatos.
Para assegurar que sejam cumpridos os objetivos da licitação, a Lei 8.666/93 estabelece extensa regulamentação, que parte dos princípios e das definições das modalidades e suas características, passa pelo processo em si – desde as providências preliminares até a rescisão dos contratos – e termina nas sanções de caráter administrativo e penal e em algumas regras relativas ao processo judicial e aos recursos administrativos.
As sanções de caráter penal se revelam diante de irregularidades mais graves que possam atingir o processo licitatório. Mais graves não só no sentido abstrato – que é o próprio fundamento da tipificação de determinadas condutas –, mas também no plano concreto, com o que se prestigia da forma mais ampla o sentido de ultima ratio que caracteriza o Direito Penal. Não é por acaso, v.g., que os tribunais superiores só consideram criminosa a conduta de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais se o agente público atua com propósito de causar prejuízo ao erário e se o prejuízo realmente ocorre, requisitos que não integram expressamente o tipo (STJ: RHC 49.627/RN, j. 20/06/2017; STF: Inq 3674/RJ, j. 07/03/2017). Considera-se que o ilícito penal não pode ser igualado ao ilícito administrativo. Se este último ocorre pela simples atuação irregular do agente público (ainda que com observância parcial ou imperfeita de normas procedimentais), o crime só existe se a conduta é permeada pela finalidade de obter um proveito criminoso de qualquer natureza.
Neste momento, interessam-nos duas das figuras criminosas relativas às irregularidades na licitação: a fraude sobre o caráter competitivo e o superfaturamento. E nos interessa sobretudo analisar se é possível o concurso entre as duas figuras ou se uma necessariamente exclui a outra.
A fraude é tipificada no art. 90 da Lei 8.666/93:
Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
As condutas tipificadas nesta figura criminosa atingem diretamente o processo licitatório por meio da quebra do caráter competitivo. Adotam-se práticas ardilosas para conferir a ilusão de que o certame cumpre o propósito de garantir o contrato mais vantajoso para a Administração, mas, na verdade promove-se verdadeira pantomina em que os concorrentes se ajustam para direcionar o resultado da licitação e obter vantagem a partir da adjudicação. É o que se dá quando diversos concorrentes combinam previamente os valores relativos às ofertas para que um deles logre a contratação. É comum, aliás, que o mesmo grupo integre diversos procedimentos licitatórios e estabeleçam combinações de propostas de forma alternada, promovendo assim uma espécie de rodízio em razão do qual cada um tem a sua vez para alcançar a contratação fundada na fraude.
Segundo a jurisprudência do STJ, a conduta de fraudar o caráter competitivo da licitação tem natureza formal, ou seja, dispensa-se o efetivo prejuízo para o erário, assim como não se exige comprovação de locupletamento. Basta, portanto, que se demonstre a quebra da natureza competitiva do certame por meio de ajuste ou outro subterfúgio:
“O delito do art. 90 da Lei 8.666/93 tem natureza formal, ocorrendo sua consumação mediante o mero ajuste, combinação ou adoção de qualquer outro expediente com o fim de fraudar ou frustrar o caráter competitivo da licitação, independentemente da obtenção da vantagem (adjudicação do objeto licitado para futura e eventual contratação). Precedentes do STF e do STJ” (REsp 1.623.985, j. 17/05/2018).
A conduta relativa ao superfaturamento é tipificada no art. 96, inc. I, da Lei 8.666/93 e consiste em:
Art. 96. Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente:
I – elevando arbitrariamente os preços;
(…)
Pena – detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Com fundamento sobretudo no princípio da livre concorrência, há quem considere esta figura incompatível com a ordem constitucional, pois não compete ao Estado pretender limitar a liberdade de que desfruta o fornecedor para estabelecer o valor que considera adequado para seus serviços ou para os bens a serem fornecidos à Administração Pública. Para esses autores, cabe ao fornecedor estabelecer o preço que lhe convém e à Administração selecionar a proposta que lhe seja mais vantajosa. É o caso de Guilherme de Souza Nucci e de Marçal Justen Filho:
“Inconstitucionalidade ou inutilidade do dispositivo: as partes que participarem de uma licitação podem estipular o preço que quiserem para seus bens. Não pode o Estado pretender regular esse cenário, sob pena de intervenção indevida na atividade comercial privada. Nesse prisma, diz Marçal Justen Filho que ‘a elevação de preços não pode ser tipificada como crime. Nesse ponto, o dispositivo é inconstitucional, por ofender os arts. 5º, XXII (garantia ao direito de propriedade), e 170, IV (livre concorrência). Todo particular tem assegurada a mais ampla liberdade de formular propostas de contratação à Administração Pública. Para tanto, examinará seus custos, estimará seus lucros e fixará os riscos que pretende correr. Não pode ser constrangido a formular proposta para a Administração Pública idêntica à que formularia para terceiros. Portanto, se o particular decidir elevar seus preços, ainda que de modo arbitrário, não praticará ato reprovável pela lei penal. Se a Administração reputar que os preços são excessivos, deverá rejeitar a proposta e valer-se dos instrumentos jurídicos de que dispõe (inclusive e se for o caso, promovendo a desapropriação mediante prévia e justa indenização’ (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 634/635). A isso acrescentamos poder o Estado utilizar outros meios coercitivos legítimos, pois se houver aumento excessivo de preços, pode-se configurar delito contra a ordem econômica. Sob outro prisma, a elevação arbitrária de preços, se tiver por fundamento um ajuste entre licitantes, para eliminar o caráter competitivo da licitação, visando à obtenção de maior lucro, pode inserir-se na figura do art. 90 desta Lei.” (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 639/640).
Não se tem notícia, no entanto, de decisões nos tribunais superiores em que a inconstitucionalidade tenha sido reconhecida. E não nos parece mesmo que deva sê-lo.
O oferecimento de uma proposta com valor exorbitante é mesmo irrelevante, e não parece nada razoável conferir ao Estado o poder de controlar o preço que um particular estabelece sobre seus bens e serviços. De fato, o fornecedor pode, a seu critério, atribuir o preço que lhe convém.
Não é disso, porém, que trata o tipo penal, cuja ação nuclear é fraudar licitação ou contrato, não simplesmente elevar preço ou fazer proposta com preço exagerado. Ora, se há fraude, é necessária a concorrência de algum subterfúgio para provocar a contratação a preço elevado ou para provocar a elevação durante a execução do contrato. A conduta que se limita a propor preços elevados não é de forma nenhuma suficiente para caracterizar o crime.
Como exemplo, podemos citar o caso julgado pelo STF no HC 102.063/ES (j. 05/10/10). O responsável legal por uma pessoa jurídica foi processado porque havia contratado com a Administração Pública a prestação de serviços de publicidadeNo mesmo julgado, o STF ampliou a incidência do art. 96, inc. I para as situações de superfaturamento na prestação de serviços, não abarcados no tipo, que menciona apenas bens e mercadorias. Concluiu-se que serviços se incluem no conceito de “bens”. e, num aditivo contratual, aumentou em cento e quarenta e cinco por cento o valor estabelecido, sem apresentar nenhuma justificativa. Ou seja, o aditivo contratual havia sido um meio fraudulento de elevar arbitrariamente o preço. Se o valor maior fosse proposto durante o certame, a proposta poderia ser simplesmente descartada e não se cogitaria a ocorrência do crime devido à inexistência de conduta ardilosa. Mas o aumento do preço em plena execução contratual, sem nenhuma justificativa, deixou claro o propósito ilegítimo.
A figura do superfaturamento, ao contrário da anterior, é material, isto é, a Administração Pública deve sofrer prejuízo decorrente do ato fraudulento. Não basta, dessa forma, identificar o estratagema para elevar os preços. É neste sentido a orientação do STJ:
“(…) 2. O tipo penal do art. 96 da Lei 8.666/93, por se tratar de delito material, exige a ocorrência do resultado naturalístico, com descrito prejuízo à Fazenda Pública. 3. Ausente a demonstração do prejuízo causado à Fazenda Pública, sequer descrito, mormente porque a empresa que adjudicou o objeto da licitação não integrava o cartel referido na denúncia, vê-se a atipicidade da conduta imputada (…).” (REsp 1.683.839/SP, j. 12/12/2017).
Feitas essas considerações a respeito das características de ambas as figuras criminosas, chegamos a outro ponto: É possível o concurso entre elas?
A nosso ver, sim, é possível que ambas decorram das mesmas circunstâncias sem que se dê a absorção de uma pela outra.
A fraude tipificada no art. 90 ataca, como apontamos, pura e simplesmente o caráter competitivo do processo licitatório, contentando-se a lei com qualquer tipo de ajuste que vise a diluir essa característica. Se um município inicia processo de concorrência para a realização de uma obra, é possível que os interessados se reúnam e combinem o valor de cada proposta para que determinado integrante do grupo vença o certame. Nesta situação, o crime de perfaz ainda que a proposta vencedora seja razoável, condizente com os valores de mercado, pois, de qualquer modo, a prévia combinação de propostas dissipa o caráter competitivo da licitação.
Não se dá o mesmo com a conduta fraudulenta do art. 96, inc. I, que não tem relação com o caráter competitivo da licitação. O que caracteriza esta conduta é a prática de um ato ardiloso para elevar os ganhos decorrentes da licitação, não para evitar a competição.
Seguindo a linha do caso julgado pelo STF no habeas corpus mencionado logo acima, imaginemos que o agente tenha se submetido normalmente ao processo licitatório de uma obra e o tenha vencido porque de fato havia apresentado a proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Posteriormente, no entanto, firma um aditivo contratual no qual elevou arbitrariamente o preço para continuar a obra. O caráter competitivo não foi atingido, mas certamente se derrogou o propósito de garantir maior vantagem para a Administração Pública.
Como se vê, uma figura é absolutamente distinta da outra, e por isso mesmo ambas podem conviver se nas mesmas circunstâncias se verificar ofensa ao princípio da competição e locupletamento por prática fraudulenta.
Voltemos aos exemplos anteriores. Determinado município lança concorrência para a contratação de obras de engenharia. Um grupo de interessados se reúne, combina os valores das propostas, que, além disso, são arbitrariamente elevadas para que o valor recebido em decorrência do contrato seja em parte distribuído entre os integrantes do grupo que cederam lugar aos “vencedores” da licitação. Temos aqui, caso a vantagem seja efetivamente alcançada, típica situação de dupla ofensa a bens jurídicos: a combinação que fulmina o caráter competitivo da concorrência e a obtenção de vantagem devido à superelevação do preço, que, embora tenha decorrido do mesmo contexto da combinação, independe dela.
Julgando um caso em que organizações criminosas utilizavam empresas para a combinação dos valores superelevados que seriam ofertados em licitações na área da saúde pública, o TRF da 2ª Região estabeleceu a possibilidade de concurso entre os crimes dos arts. 90 e 96, inc. I, exatamente porque, além do esvaziamento do caráter competitivo provocado pelos ajustes entre os criminosos, a contratação com preços arbitrariamente elevados tornou mais onerosos os contratos, acarretando prejuízo direto ao erário:
“Daí se infere que um dispositivo não exclui o outro, existindo a possibilidade de concurso de crimes. No art. 90, a fraude atinge o caráter competitivo do certame, enquanto no art. 96, I, a fraude à licitação se dá mediante a conduta vinculada de elevação dos preços arbitrariamente. Ou seja, no art. 90, combina-se e exclui-se a concorrência para que empresa predeterminada ganhe a licitação (provavelmente com pagamento de comissão ao vencido); no art. 96, I, além disso, o ganho ainda advém do superfaturamento.” (Apelação Criminal 2005.51.01.5157140, j. 26/02/2014).
Em recurso especial sobre fatos semelhantes envolvendo os mesmos agentes, o STJ encampou a tese de que o encontro entre a prévia combinação e o superfaturamento atrai o concurso de crimes:
“Em relação a estes dispositivos, alega-se, em suma, que a condenação observada, como incursos nas duas infrações importa em bis in idem, já que a primeira estaria absorvida pela outra.
Esta tese não encontrou guarida nem no juízo de primeiro grau e nem na Corte regional, vez que, de fato, se tratam de tipos penais totalmente distintos, “cujo objeto “, no tocante ao crime do art. 90, segundo Guilherme de Souza Nucci, “é o caráter competitivo do procedimento licitatório ” (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição, página 853), ou seja, o agente, com o ato de frustrar ou de fraudar, mediante pacto, acordo ou qualquer outro expediente, busca eliminar a competição ou fazer com que esta seja apenas aparente, enquanto que na outra figura criminal, a do art. 96, I, também mediante fraude, o delinquente atinge diretamente a licitação, “elevando arbitrariamente os preços “, em “prejuízo da Fazenda Pública “.
Daí, então, a boa solução adotada pelo magistrado singular, no que foi secundado pelo Tribunal que examinou a apelação, além de haverem encontrado elementos probatórios que autorizaram a caracterização das duas hipóteses delitivas.” (REsp 1.315.619, j. 15/08/2013).
Conclui-se, portanto, que os crimes dos arts. 90 e 96, I, da Lei 8.666/93 não têm relação de dependência. O primeiro, relativo à quebra do caráter competitivo da licitação, de nenhuma forma se confunde com o segundo, que provoca prejuízos materiais decorrentes da conduta ardilosa, o que impede a incidência das soluções próprias do conflito aparente de normas (especificamente, a consunção). Uma vez que determinado grupo de indivíduos promova alguma espécie de ajuste para dirigir o resultado da licitação, e em seguida eleve arbitrariamente o preço para obter vantagem em prejuízo do erário, a dupla imputação será inevitável.
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