7) São atípicas as condutas descritas nos arts. 12 e 16 da Lei n. 10.826/2003, praticadas entre 23/12/2003 e 23/10/2005, mas, a partir desta data, até 31/12/2009, somente é atípica a conduta do art. 12, desde que a arma de fogo seja apta a ser registrada (numeração íntegra).
Vimos nos comentários à tese anterior que o STJ reconhece a abolitio criminis da posse de arma de fogo de uso permitido ou restrito até 23/10/05. Superada esta data, a abolitio criminis permaneceu até 31/12/2009 – por força da Lei 11.922/09 – somente para condutas subsumidas ao art. 12 do Estatuto do Desarmamento, isto é, em benefício dos possuidores de armas de fogo de uso permitido com numeração intacta, passíveis portanto de registro.
Ressalte-se ainda que não tem nenhuma relevância para a tipificação o fato de o Decreto 5.123/04 estabelecer, no art. 69 Art. 69. Presumir-se-á a boa-fé dos possuidores e proprietários de armas de fogo que espontaneamente entregá-las na Polícia Federal ou nos postos de recolhimento credenciados, nos termos do art. 32 da Lei no 10.826, de 2003. (com redação dada pelo Decreto 7.473/11), que se presume a boa-fé dos possuidores e proprietários de armas de fogo que espontaneamente entregá-las na Polícia Federal ou nos postos de recolhimento credenciados, nos termos do art. 32 da Lei 10.826/03 Art. 32. Os possuidores e proprietários de arma de fogo poderão entregá-la, espontaneamente, mediante recibo, e, presumindo-se de boa-fé, serão indenizados, na forma do regulamento, ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma.. Isto porque, além de não se alterarem os prazos estabelecidos por lei, o dispositivo trata da entrega espontânea, não das situações em que o agente é surpreendido com o artefato em sua residência:
“3. É atípica a conduta relacionada ao crime de posse de arma de fogo, acessórios e munição, seja de uso permitido, restrito, proibido ou com numeração raspada, incidindo a chamada abolitio criminis temporária, se praticada no período compreendido entre 23/12/2003 e 23/10/2005. O respectivo termo final foi prorrogado até 31/12/2008 pela Medida Provisória 417, de 31/1/2008, convertida na Lei 11.706/2008, que deu nova redação aos artigos 30 a 32 da Lei 10.826/2003, somente para os possuidores de armamentos de uso permitido, não mais albergando o delito previsto no artigo 16 do Estatuto do Desarmamento. Na mesma esteira, a Lei 11.922, de 13/4/2009, prorrogou o prazo previsto no artigo 30 da Lei 10.826/2003 até 31/12/2009 apenas no que toca ao crime de posse de arma de uso permitido.
4. “[…] o Decreto nº 7.473/2011 não ensejou extensão do prazo de descriminalização quanto ao delito de posse irregular de arma de fogo de uso permitido, ressaltando a necessidade de entrega espontânea à autoridade competente para que se presuma a boa-fé do possuidor” (HC n. 262.895/RS, Rel. Min. FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, Dje 3/11/2014).
5. Os termos do Decreto n. 7.473/2011 e a Portaria n. 797/2001, por serem normas de hierarquia inferior à lei, não podem estender o prazo para a regularização de arma de fogo. Logo, típica a conduta do agente flagrado com a guarda e posse de arma de fogo com numeração raspada em sua residência, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, em 27/3/2009” (HC 405.337/SP, j. 03/10/2017)
8) A regra dos arts. 30 e 32 da Lei n. 10.826/2003 alcança, também, os crimes de posse ilegal de arma de fogo praticados sob a vigência da Lei n. 9.437/1997, em respeito ao princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
A Lei 10.826/03 não inaugurou a punição da posse ilegal de arma de fogo no ordenamento jurídico brasileiro, mas apenas recrudesceu o tratamento penal conferido à conduta. Antes, a Lei 9.437/97 já trazia a respectiva tipificação em seu artigo 10Art. 10. Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena - detenção de um a dois anos e multa. § 1° Nas mesmas penas incorre quem: I - omitir as cautelas necessárias para impedir que menor de dezoito anos ou deficiente mental se apodere de arma de fogo que esteja sob sua posse ou que seja de sua propriedade, exceto para a prática do desporto quando o menor estiver acompanhado do responsável ou instrutor; II - utilizar arma de brinquedo, simulacro de arma capaz de atemorizar outrem, para o fim de cometer crimes; III - disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que o fato não constitua crime mais grave. § 2° A pena é de reclusão de dois anos a quatro anos e multa, na hipótese deste artigo, sem prejuízo da pena por eventual crime de contrabando ou descaminho, se a arma de fogo ou acessórios forem de uso proibido ou restrito. § 3° Nas mesmas penas do parágrafo anterior incorre quem: I - suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato; II - modificar as características da arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito; III - possuir, deter, fabricar ou empregar artefato explosivo e/ou incendiário sem autorização; IV - possuir condenação anterior por crime contra a pessoa, contra o patrimônio e por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. § 4° A pena é aumentada da metade se o crime é praticado por servidor público..
Com a entrada em vigor da Lei 10.826/03, houve, como já destacamos, diversos diplomas normativos que impediram a punição da posse ilegal de arma. Há quem sustente que não se trata de efetiva abolitio criminis, mas de regras de caráter transitório que, no intuito de fomentar a entrega das armas por quem as possuía sem registro, impediram momentaneamente a punição. Por esta razão, tais normas não poderiam retroagir, aplicando-se apenas para fatos cometidos já sob sua vigência. Há inclusive decisão do STF neste sentido:
“I. A vacatio legis de 180 dias prevista nos artigos 30 a 32 da Lei 10.826/2003 não tornou atípica a conduta de posse ilegal de arma de fogo. II – Não há abolitio criminis do delito de posse ilegal de arma de fogo ocorrido anteriormente à vigência da Lei 10.826/2003, a qual somente instituiu prazo para aqueles que possuíam armas fogo de maneira irregular procedessem à sua regularização. III – Ordem denegada.” (HC 98.180/SC, j. 29/06/2010)
O STJ, no entanto, se orienta no sentido oposto para considerar viável a extinção da punibilidade de condenados pela posse de arma de fogo sob a vigência da Lei 9.437/97:
“1. Conforme precedentes desta Corte, a abolitio criminis temporalis prevista na Lei n. 10.826/03 (SINARM) retroage para alcançar fatos cometidos na vigência da Lei n. 9.437/97.” (AgRg no REsp 1.451.170/DF, j. 21/06/2018)
*****
“1. No caso, foi declarada extinta a punibilidade do réu – condenado à pena de 1 ano de detenção pela prática, em 3/6/2003, do delito previsto no art. 10, caput, da Lei 9.437/1997 – pelo Juízo da execução penal, em 27/2/2014, pois, com a superveniência da Lei n. 10.826/2003, que consentiu aos possuidores de arma de fogo de uso permitido regularizar sua situação, considera-se atípica a conduta do ora agravado, em face da aplicação retroativa da norma penal mais benéfica.
2. A regra do art. 30 da Lei n. 10.826/2003 alcança, também, os crimes praticados sob a vigência da Lei n. 9.437/1997, em respeito ao princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.” (AgRg no AREsp 684.801/DF, j. 16/06/2015)
9) A forma qualificada do art. 10, § 3º, IV, da Lei n. 9.437/1997, que foi suprimida do ordenamento jurídico com o advento da Lei n. 10.826/03, não tem o condão de tornar atípica a conduta, mas apenas de desclassificar o delito para a forma simples, prevista no caput do dispositivo legal mencionado.
A revogada Lei 9.437/97 estabelecia, no art. 10, § 3º, inciso IV, uma qualificadora para as situações em que os autores de condutas relativas, dentre outras, à posse e ao porte de arma de fogo ostentassem condenação anterior por crime contra a pessoa, contra o patrimônio e por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.
A qualificadora deixou de existir na Lei 10.826/03, mas, segundo a tese firmada pelo STJ, não se trata de abolitio criminis em relação às condutas criminosas tipificadas no art. 10, mas tão somente de desclassificação:
“2. Esta Corte Superior firmou o entendimento de que a forma qualificada do art. 10, § 3º, IV, da Lei n. 9.437/1997 foi suprimida do ordenamento jurídico com o advento da Lei n. 10.826/03, razão pela qual tal conduta deve ser desclassificada para a forma simples, expressa no art. 10, caput, do estatuto revogado.
3. Habeas corpus não conhecido, mas, ordem concedida, de ofício, para desclassificar o delito para a forma simples expressa no art. 10, caput, da Lei n. 9.437/97, fixando a pena definitiva em 1 ano e 3 meses de reclusão, além de 12 dias-multa.” (HC 162.244/RJ, j. 05/11/2015)
10) Não se aplica o princípio da consunção quando os delitos de posse ilegal de arma de fogo e disparo de arma em via pública são praticados em momentos diversos e em contextos distintos.
Ocorre a consunção (também denominada absorção) quando se verifica a continência de tipos, ou seja, o crime previsto por uma norma (consumida) não passa de uma fase de realização do crime previsto por outra (consuntiva) ou é uma forma normal de transição de um crime para o outro (crime progressivo).
É possível, nos crimes relativos às armas de fogo, que a posse ou o porte da arma seja considerado um meio para a prática do disparo, mas esta conclusão não pode ser automática, deve ser ditada pelas circunstâncias do caso concreto. Somente se considera a absorção se ambas as condutas se derem no mesmo contexto fático.
Dessa forma, se “A” tem a posse legal de uma arma de fogo em sua residência e, decidido a efetuar disparos, dirige-se à via pública e de fato aciona o artefato, é possível defender a absorção do porte pelos disparos. Se, no entanto, depois de manter ilegalmente a arma em sua residência por vários anos, “A” efetua disparos em direção à via pública, o correto é lhe imputar os dois crimes em concurso, pois a posse e os disparos não ocorreram no mesmo contexto:
“1. Aplica-se o princípio da consunção aos crimes de porte ilegal e de disparo de arma de fogo ocorridos no mesmo contexto fático, quando presente nexo de dependência entre as condutas, considerando-se o porte crime-meio para a execução do disparo de arma de fogo.
2. Concluindo o Tribunal de origem, com apoio no conjunto probatório dos autos, que os crimes de posse e de disparo de arma de fogo não foram praticados no mesmo contexto fático, porquanto se aperfeiçoaram em momentos diversos e com desígnios autônomos, a reversão do julgado encontra óbice na Súmula 7/STJ.” (AgRg no AREsp 1.211.409/MS, j. 08/05/2018)
11) A simples conduta de possuir ou de portar arma, acessório ou munição é suficiente para a configuração dos delitos previstos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003, sendo inaplicável o princípio da insignificância.
Esta tese vem na esteira da orientação de que a posse e o porte de arma de fogo, munições ou acessórios são crimes de perigo abstrato, que dispensam a comprovação de efetivo risco à segurança pública. Por isso, o princípio da insignificância – aplicável em situações em que a ofensa é incapaz de atingir materialmente e de forma relevante e intolerável o bem jurídico protegido – tem sido rechaçado nos delitos relativos a armas de fogo.
Não obstante o teor da tese, devemos ressaltar que há decisões, tanto no STF quanto no próprio STJ, em que a insignificância foi admitida porque evidenciada a desproporcionalidade entre a conduta praticada e a resposta penal. Trata-se, no geral, de situações em que o agente é surpreendido com apenas um projétil de arma de fogo ou até mesmo com pequena quantidade de projéteis:
“Não é possível vislumbrar, nas circunstâncias, situação que exponha o corpo social a perigo, uma vez que a única munição apreendida, guardada na residência do acusado e desacompanhada de arma de fogo, por si só, é incapaz de provocar qualquer lesão à incolumidade pública” (STF: RHC 143.449/MS, j. 26/09/2017).
“1. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça aponta que os crimes previstos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003 são de perigo abstrato, sendo desnecessário perquirir sobre a lesividade concreta da conduta, porquanto o objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física e sim a segurança pública e a paz social, colocadas em risco com a posse de munição, ainda que desacompanhada de arma de fogo, revelando-se despicienda a comprovação do potencial ofensivo do artefato através de laudo pericial. Por esses motivos, via de regra, inaplicável, nos termos da jurisprudência desta Corte, o princípio da insignificância aos crimes de posse e de porte de arma de fogo ou munição, sendo irrelevante inquirir a quantidade de munição apreendida.
(…)
3. No caso, o réu foi preso em flagrante na posse de 5 munições calibre .38, de uso permitido, desacompanhadas de dispositivo que possibilitasse o disparo do projétil. Por conseguinte, deve ser reconhecida a inocorrência de ofensa à incolumidade pública, sendo, pois, de rigor o afastamento da tipicidade material do fato, conquanto seja a conduta formalmente típica.” (STJ: EDcl no AgRg no REsp 1.700.630/RS, j. 04/10/2018)
12) Independentemente da quantidade de arma de fogo, de acessórios ou de munição, não é possível a desclassificação do crime de tráfico internacional de arma de fogo (art. 18 da Lei de Armas) para o delito de contrabando (art. 334-A do Código Penal), em respeito ao princípio da especialidade.
A Lei 10.826/03 pune no art. 18, com reclusão de quatro a oito anos, as condutas de importar, exportar, favorecer a entrada ou a saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente.
Trata-se de uma forma especial do contrabando (art. 334-A do Código PenalArt. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos. ) aplicável em todas as situações de importação ilegal de armas de fogo, acessórios ou munições. Seja qual for a quantidade importada, não há possibilidade de que a conduta se subsuma ao dispositivo do Código Penal:
“1. A importação ilegal de munições, ab initio, poderia ser enquadrada no art. 334 do Código Penal, não fosse a especialização conferida pelo art. 18 da Lei n. 10.826/2003.
2. Consoante a jurisprudência deste Superior Tribunal, é típica a conduta de importar munição sem autorização da autoridade competente, nos termos dos arts. 18 c/c o 19, ambos da Lei n. 10.826/2003, mesmo que o réu detenha o porte legal da arma, no Brasil, em razão do alto grau de reprovabilidade da conduta.
3. Tipificada a conduta de importar munição sem autorização da autoridade competente pelo art. 18 da Lei n. 10.826/2003, não há que se falar em crime de contrabando.” (AgRg no REsp 1.599.530/PR, j. 16/08/2016)
Note-se, no entanto, que não se aplica a Lei 10.826/03 no caso de importação de simulacro de arma de fogo. Embora a proibição de importação esteja na mesma lei (art. 26), a tipificação recai no art. 334 do Código Penal porque o tipo do art. 18 se restringe a armas, munições e acessórios verdadeiros:
“1. Nos termos do artigo 26 da Lei n. 10.826/2003, são vedadas a fabricação, a venda, a comercialização e a importação de brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo, que com estas se possam confundir.
2. A importação de arma de brinquedo capaz de ser confundida com verdadeira configura o delito de contrabando, diante da proibição contida no artigo 26 da Lei n. 10.826/2003, considerando os riscos à segurança e incolumidade públicas.
3. No crime de contrabando a tutela jurídica volta-se não apenas ao interesse estatal patrimonial, mas também à segurança e à incolumidade pública, de modo a afastar a incidência do princípio da insignificância. Precedentes.” (REsp 1.727.222/PR, j. 02/08/2018)
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