EMENTA: 1. Um julgamento histórico no STF. 2. Princípio da proporcionalidade em sentido amplo. 3. A soberania do júri e jurisprudência do STF. 4. Os crimes de homicídio e a facilidade de concretização de impunidade através da prescrição. 5. A soberania dos veredictos e o princípio da razoabilidade. 6. Relatividade do princípio da soberania dos vereditos. 7. Uma conclusão inevitável.
1. UM JULGAMENTO HISTÓRICO NO STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) julga de forma virtual um caso de feminicídio ocorrido em Santa Catarina que pode mudar o entendimento sobre a prisão de condenados pelo Tribunal do Júri em todo o País.
Historicamente, sempre houve um grande confronto entre o principio da soberania dos veredictos e o princípio da não culpabilidade antecipada.
Para os defensores da prevalência do princípio da soberania dos veredictos, é possível a execução provisória da pena logo após o veredicto do tribunal do júri. Esta tese foi, inclusive, o voto do relator, o ministro Luis Roberto Barroso. O presidente do STF, Dias Toffoli, o acompanhou.
Para os defensores da prevalência do princípio da não culpabilidade antecipada, somente será possível executar a pena após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Este foi o voto do Min. Gilmar Mendes.
O ministro Ricardo Lewandowski pediu vista.
2. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO AMPLO
O princípio da proporcionalidade é operado por meio da verificação, pelo Juiz, de determinado caso concreto, no qual surja o conflito de dois interesses juridicamente protegidos. Em caso afirmativo, deverão esses interesses, postos em causa, ser pesados e ponderados. A partir daí estabelecer-se-ão os limites de atuação das normas, na verificação do interesse predominante. Desse modo, o magistrado, mediante minuciosa valoração dos interesses, decidirá em que medida deve-se fazer prevalecer um ou outro interesse, impondo as restrições necessárias ao resguardo de outros bens jurídicos.
Stinmetz (2001, p. 142-143) elucida que:
“A colisão de direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a realização ou otimização de um implica a afetação, a restrição ou até mesmo a não realização do outro, a inexistência de uma hierarquia abstrata entre direitos em colisão, isto é, a impossibilidade de construção de uma regra de prevalência definitiva”.
Realmente, com frequência, o julgador depara-se com dilemas em que a solução de um problema processual implica o sacrifício de um valor conflitante com outro, não obstante ambos tenham proteção legal. Nesse caso, devemos valorar os princípios em conflito, estabelecendo, em cada caso, que direito ou prerrogativa deve prevalecer. Na solução do conflito é preciso desvendar o seguinte paradigma: se quaisquer das soluções afrontarão direitos, qual a solução menos injusta, ou seja, qual a solução que, dentro das desvantagens, apresentará mais vantagem à solução do litígio, de modo a dar-se a solução concreta mais justa?
A ponderação é a forma de argumentação jurídica que mais intimamente se encontra associada à necessidade de comparação entre dois ou mais valores (ou princípios, direitos, bens, interesses, como se prefira) para o estabelecimento da decisão correta num determinado caso.
Para Robert Alexy, o “caminho do constitucionalismo discursivo, que começa com os direitos fundamentais e segue com a ponderação, o discurso e a jurisdição constitucional terminará com uma ilusão, na qual a legitimação de qualquer coisa é possível”.
A ponderação ou balancing, nesse contexto, assume a função de instrumentalizar a racionalidade no constitucionalismo discursivo em torno da máxima da proporcionalidade.
Sua formulação estrutural é sintetizada pela lei da ponderação, segundo a qual “quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”.
A lei da ponderação, portanto, é uma estrutura racional concebida para estabelecer a correção, ou valoração, do juízo jurídico de um discurso, o que significa dizer que a ponderação é uma forma de argumentação própria do constitucionalismo discursivo, instrumentalizada em torno da máxima da proporcionalidade.
E ainda que a ponderação não possa ser tida por si mesma como um modelo suscetível de conduzir o intérprete à melhor decisão em todos os casos, o modelo da ponderação como um todo, ao associar a lei da colisão à teoria da argumentação jurídica, pode ser aceito como um modelo discursivo confiável, em cuja essência consiste a busca pela fundamentação racional de enunciados de precedências condicionadas entre dois ou mais valores, interesses ou princípios colidentes.
Nesse sentido, é certo que os enunciados de precedências condicionadas decorrentes da ponderação de dois ou mais princípios no caso concreto consubstanciam regras atribuídas aos direitos fundamentais as quais, diante de determinadas condições, estabelecem a consequência jurídica em relação ao princípio prevalente.
No processo de criação e fundamentação de tais enunciados, no entanto, todos os argumentos possíveis na argumentação constitucional podem ser utilizados. Desse modo, para a fundamentação de um enunciado de preferência condicionada e, com isso, para a justificação da regra a que ele corresponde, pode-se recorrer a todos os cânones da interpretação e argumentos dogmáticos, precedentes, argumentos práticos e empíricos em geral, além de formas específicas de argumentação jurídica.
É indiscutivelmente aceito pela jurisprudência dessa Suprema Corte o entendimento de que os direitos fundamentais previstos na Constituição não se revestem de caráter absoluto, estando sujeitos, portanto, a juízos de ponderação no caso concreto, definidores de relações de precedência condicionadas entre os demais princípios fundamentais concorrentes.
Nesse sentido, para uma adequada colocação normativa do problema, deve-se desde logo registrar que culpa e prisão não podem ser consideradas como entidades caracterizadoras do mesmo mandado normativo perante a Constituição, pois decorre da própria ordem constitucional a possibilidade de segregação sem declaração inequívoca de culpa, “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (art. 5º, LXI, CRFB).
Resulta importante, aqui, a advertência do Ministro Eros Roberto Grau, segundo o qual a Constituição não pode simplesmente ser lida em tiras, aos pedaços isolados.
O traço materialmente diferenciador entre a sentença do magistrado singular em um julgamento de crime comum, e aquela decorrente de um crime contra a vida pelo Tribunal do Júri, está plasmado na expressão “soberania dos vereditos”.
A expressão “soberania” é mencionada no texto constitucional somente em três hipóteses:
1ª) referindo-se à soberania nacional como fundamento da república;
2) à soberania popular exercida por meio do sufrágio universal;
3) e à soberania dos veredictos nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida.
Nessa lógica, ao contrário dos demais crimes comuns, a Carta Magna conferiu ao próprio povo a prerrogativa de julgar seus pares pelo cometimento de crimes contra a vida, e o fez não apenas na perspectiva de uma cláusula institucional de soberania, mas também como uma garantia fundamental do próprio indivíduo contra o Estado, vez que, no julgamento comum de crimes contra a vida, não é dado a nenhum integrante da Magistratura nacional interferir no mérito dessa decisão (5º, XXXVIII, alínea “c”, da CRFB).
O tratamento diferenciado no plano normativo-constitucional corrobora a necessidade de diferenciação no plano da concordância prática.
Tal revela que a Constituição da República, ao atribuir ao Tribunal do Júri a competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida e qualificá-los sob a cláusula da “soberania dos veredictos”, retirou dos tribunais a possibilidade de substituição da decisão proferida pelo Conselho de Sentença, sendo vedado ao órgão do Poder Judiciário reapreciar os fatos e as provas que assentaram a responsabilidade penal do réu reconhecida soberanamente pelo Júri.
Não cabendo aos Tribunais a reapreciação dos fatos e provas – ressalvada apenas a hipótese de decisão manifestamente contrária à prova dos autos -, não há se falar em violação ao princípio da presunção de inocência ou de não culpabilidade na execução imediata da condenação imposta pelo Tribunal do Júri.
3. A SOBERANIA DO JÚRI E JURISPRUDÊNCIA DO STF
A questão da prevalência do princípio da soberania do júri na resolução do antagonismo normativo concreto decorrente da aplicação do princípio da não culpabilidade não é matéria não é estranha à jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal.
Nos autos do HC n. 118.770/SP, de relatoria para acórdão do Eminente Ministro Luís Roberto Barroso, a Primeira Turma firmou a tese de que: “A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade”.
De acordo com esse julgamento, a “Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d). Prevê, ademais, a soberania dos veredictos (art. 5º, inciso XXXVIII, c), a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular”. Diante disso, “não viola o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso. Essa decisão está em consonância com a lógica do precedente firmado em repercussão geral no ARE 964.246-RG, Rel. Min. TeoriZavascki, já que, também no caso de decisão do Júri, o Tribunal não poderá reapreciar os fatos e provas, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri. 3. Caso haja fortes indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos, hipóteses incomuns, o Tribunal poderá suspender a execução da decisão até o julgamento do recurso”.
Além disso, em outro precedente do mesmo órgão julgador decidiu-se favoravelmente à prevalência do princípio da soberania dos veredictos, ao afirmar-se que a “custódia lastreada em decisão do Tribunal do Júri, ainda que pendente recurso especial, não viola o princípio constitucional da inocência” (Habeas Corpus nº 133528/PA, 1ª Turma do STF, Rel. Marco Aurélio. j. 06.06.2017, maioria, DJe 21.08.2017).
4. OS CRIMES DE HOMICÍDIO E A FACILIDADE DE CONCRETIZAÇÃO DE IMPUNIDADE ATRAVÉS DA PRESCRIÇÃO
No ano de 2019, em primoroso trabalho coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça, foi elaborado o “Diagnóstico das Ações Penais de Competência do Tribunal do Júri”.
Esse relatório concluiu que: “o desfecho mais recorrente nos processos de competência do Tribunal do Júri foi acondenação (47,9% dos casos decididos). Em seguida, vieram as decisões pela extinção da punibilidade (32,4%) e, em menor proporção, as decisões absolutórias (19,6%)”.
Além disso, na comparação da natureza da decisão final em relação à duração dos processos, referido estudo demonstrou que “a prescrição ocorreu em 14% dos julgamentos e representa 42% dos casos de extinção da punibilidade. O tempo médio decorrido entre o início da ação penal e a decisão pela extinção da punibilidade é de oito anos e seis meses, porém, nas prescrições, a média sobe para treze anos. Cerca de 64% das decisões que reconhecem a prescrição ocorrem justamente nos processos mais longevos, com mais de oito anos de tramitação”.
Quando se condiciona o cumprimento da pena definida no veredicto do Conselho de Sentença ao trânsito em julgado da condenação, facilita-se a famigerada prescrição, além de transmutar-se a exceção que decorre da mutabilidade fundada na decisão contrária à prova dos autos (que se verifica em hipóteses muito incomuns e bem delimitadas), em cláusula de barreira da eficácia normativa do princípio da soberania dos veredictos (firmados normativamente em torno do pressuposto fático condenatório, segundo o levantamento do CNJ).
5. A SOBERANIA DOS VEREDICTOS E O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
Atuamos muito tempo no Tribunal do Júri, precisamos muitas injustiças fáticas, mas a pior das injustiças é a denominada “injustiça hermenêutica”, que pode ser revelada como “o dedo riste e o riso cínico na cara da justiça”. Como?
Réu assassino confesso de jovens e mulheres, ganha como prêmio um longo procedimento e um belo dia podem ir a julgamento. Após uma longa batalha de debates, enfim a justiça demonstra seu veredito: “Condenado”. O alívio é total por parte daqueles que sonhavam com esse momento, as frases que suspiram no plenário do júri é: “enfim, a justiça foi feita”, mas a alegria logo é arrefecida quando o juiz ao concluir a sentença diz: “defiro o pedido para que o réu recorra em liberdade”.
Nesse contexto, questiona-se: É razoável? É proporcional que ainda aguarde o réu em liberdade o desfecho de seus subsequentes artifícios recursais? Quantos julgamentos de feminicídios Brasil afora estão em condições mais morosas do que o presente caso? Quantos assassinatos vinculados ao tráfico de drogas e à guerra entre facções criminosas?
Nesse cenário de conflituosidade normativa, não se pode perder de vista, ainda, o princípio da razoabilidade, na sua propriedade de conexão e sentido entre o Direito e a Justiça. Oliveira (2003, p. 92) conceitua o princípio da razoabilidade como:
O razoável é conforme a razão, racionável. Apresenta moderação, lógica, aceitação, sensatez. A razão enseja conhecer e julgar. Expõe o bom senso, a justiça, o equilíbrio. Promove a explicação, isto é, a conexão entre um efeito e uma causa. É contraposto ao capricho, à arbitrariedade. Tem a ver com a prudência, com as virtudes morais, com o senso comum, com valores superiores propugnado em data comunidade.
O pensamento de Kant buscou uma compreensão ética da natureza humana, conforme descreve (1785, apud LÔBO, 2009, p.37):
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade”.
Mas qual seria o verdadeiro “pano de fundo” da superação do princípio da soberania dos julgamentos do júri ao condicioná-lo ao voluntarismo recursal do acusado?
A hipótese coloca em risco não apenas a efetivação da própria justiça, hoje em fase de total descrédito pelas constantes efetivações de “injustiça hermenêutica” patrocinada por um doutrinamento “garantista hiperbólico monocular”, mas, igualmente, enfraquece e esvazia o sentido do próprio Estado Democrático de Direito, que tem na soberania dos veredictos um de seus postulados mais evidentes de expressão, ao atribuir ao povo o poder de intervenção direta nos domínios da Justiça.
Não por outra razão, o princípio da soberania dos veredictos foi introduzido no catálogo dos direitos fundamentais, basicamente vinculado à defesa da VIDA, bem nuclear que reclamou o estabelecimento de um degrau de proteção constitucional maior que os demais valores e princípios constitucionais, porque, na invocação de Kant, o ser humano deve estar no centro do conhecimento, como um fim em si mesmo, o que faz com que a proteção de sua existência seja gravada com especial nível de proteção na ordem constitucional.
Usando como alicerce o garantismo integral, o promotor de Justiça Caio Márcio Loureiro destaca que o modelo ideal de direito penal garantista é o que busca não apenas evitar a hipertrofia da punição, mas também, com a mesma ênfase, impedir a intervenção insuficiente do Estado na tutela do bem jurídico apontado como indispensável para a convivência harmônica do homem em sociedade (O princípio da plenitude da vida no tribunal do júri: Carlini e Caniato, 2017).
6. RELATIVIDADE DO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS
O denominado “Pacote Anticrime” (Lei nº 13.964/2019) promoveu alterações no artigo 492 do CPP, ao instituir a letra “e”, no inciso “I”, do art. 492, bem como dos parágrafos 3o, 4o, 5o e 6o, in verbis:
Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
I – no caso de condenação:
(…)
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão,determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;
(…)
§ 3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea e do inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação.
§ 4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo.
§ 5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso:
I – não tem propósito meramente protelatório; e
II – levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.
§ 6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente na apelação ou por meio de petição em separado dirigida diretamente ao relator, instruída com cópias da sentença condenatória, das razões da apelação e de prova da tempestividade, das contrarrazões e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia.
Rodrigo Faucz Pereira e Silva no artigo “A execução provisória em condenações no Tribunal do Júri” defende a inconstitucionalidade do artigo supramencionado argumentado que:
Isto é, não obstante as discussões recentes sobre a antecipação do cumprimento da pena a partir do segundo grau de jurisdição, cria-se a execução da pena a partir de decisão em primeiro grau de jurisdição, tendo como justificativa a condenação pelo conselho de sentença a uma pena elevada. Todavia, ao determinar a prisão do condenado sem o trânsito em julgado de sentença penal, viola-se o princípio constitucional da presunção de inocência previsto no inciso LVII da Constituição Federal (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), bem como o princípio do duplo grau de jurisdição, expresso como garantia judicial mínima no Pacto de San José da Costa Rica no artigo 8, II, h (“direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”).
Entendemos a inovação legislativa padece de vício de inconstitucionalidade, não por eventual ofensa ao princípio da não culpabilidade, mas, sim, porque relativiza o principio da soberania dos vereditos, ao ampliar a única exceção definida de revisão dos veredictos do Tribunal do Júri (aquela decorrente de condenação manifestamente contrária à prova dos autos), para afastar a aplicabilidade imediata da norma constitucional que recomenda pronto cumprimento da pena privativa de liberdade aplicada. Com isso, verifica-se inconstitucionalidade em pelo menos 3 (três) das hipóteses de aplicação da norma em questão:
a) Condenados pelo tribunal do júri em pena menor que 15 anos, o juiz mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva= afronta ao princípio da soberania dos vereditos.
b) Condenados pelo tribunal do júri em uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos = preserva o princípio da soberania dos vereditos.
c) O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação = afronta ao princípio da soberania dos vereditos.
d) Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação = afronta ao princípio da soberania dos vereditos.
Em realidade, só hipótese de manifesta incompatibilidade da condenação com a prova dos autos é que o princípio da soberania dos vereditos pode ser relativizado, levando-se o acusado a novo julgamento, o que encontra lógica com a própria concordância prática com a correção dos julgamentos, numa expressão da própria Justiça.
A anulação de decisão do tribunal do júri, por manifestamente contrária à prova dos autos, não viola a regra constitucional que assegura a soberania dos veredictos do júri (CF, art. 5º, XXXVIII, c), pois, in casu, a soberania dos vereditos é relativizada ante à possibilidade concreta de efetivação de uma injustiça, que seria a condenação de uma pessoa sem provas contundentes ou erro formal grave. A relativização do princípio da soberania dos veredictos, na hipótese, encontra razões materiais no próprio texto constitucional. Fora daí, não há margem para restrições formais no plano infraconstitucional à aplicabilidade do princípio constitucional da soberania dos veredictos, condicionando-o à quantidade da pena ou à natureza de “questão substancial” não identificada com a contrariedade manifesta da prova.
Assim vem decidido reiteradamente o STF:
“O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a submissão do acusado a novo julgamento popular não contraria a garantia constitucional da soberania dos veredictos”. Precedentes. Habeas Corpus nº 115977/DF, 1ª Turma do STF, Rel. Marco Aurélio. j. 24.10.2017, unânime, DJe 22.02.2018. Ag. Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo nº 1142744/SP, 1ª Turma do STF, Rel. Alexandre de Moraes. j. 10.09.2018, unânime, DJe 19.09.2018, AI nº 728.023/RS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 28.02.11). Ag. Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo nº 1031372/SP, 2ª Turma do STF, Rel. Dias Toffoli. j. 29.09.2017, unânime, DJe25.10.2017. Ag. Reg. no Habeas Corpus nº 130690/SP, 1ª Turma do STF, Rel. Roberto Barroso. j. 11.11.2016, maioria, DJe 24.11.2016).
7. UMA CONCLUSÃO INEVITÁVEL
Assim como a aplicação de uma norma constitucional deve se realizar em conexão com a totalidade das normas constitucionais em busca de uma concordância prática, não se pode conceber a existência de um princípio constitucional sem o reconhecimento de um espaço normativo que lhe confira eficácia jurídica na ordem vigente.
Por essa razão, condicionar a aplicação do princípio da soberania dos veredictos ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória equivale ao próprio esvaziamento do conteúdo nele impregnado – porque de ínfima interferência na eficácia social -, além da caracterização de patente violação à proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais em matéria criminal.
Nesse sentido, vale lembrar a lição do Ministro Gilmar Mendes em relação aos “mandatos constitucionais de criminalização”, no julgamento do HC 104.410/RS, julgado 06.03.2012, segundo o qual, “os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidoscomo proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente”.
Dentro desse espírito, é fundamental que nossa Suprema Corte, no julgamento histórico que se desenvolve em plenário virtual, dentro de sua competência constitucional, faça a devida ponderação entre os princípios da não culpabilidade e da soberania dos veredictos, conferindo, a este último a sua devida efetividade, à luz da necessária concordância prática com as demais normas constitucionalmente convergentes na aplicação do caso concreto, reconhecendo-se a plena constitucionalidade da imediata execução do veredicto condenatório proferido pelo Tribunal do Júri, por inexistir afronta, na hipótese, ao princípio da presunção de não culpabilidade.
Nos processos dos crimes dolosos contra a vida, mais que a ampla defesa, exigida em todo e qualquer processo criminal (art. 5º, inc. LV, da CF), vigora a plenitude de defesa. No júri, não apenas a defesa técnica, relativa aos aspectos jurídicos do fato, pode ser produzida. Mais que isso, dadas as peculiaridades do processo e o fato de que são leigos os juízes, permite-se a argumentação não jurídica, com referências a questões sociológicas, religiosas, morais, ou seja, argumentos que, normalmente, não seriam considerados se o julgamento fosse proferido por um juiz togado.
Ainda como consequência desse princípio, ressalta Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1946, p. 270), inclui-se o fato de os jurados serem tirados de todas as classes sociais para julgamento de seus pares, o que confere um tom democrático ao julgamento, em que sete pessoas decidem conforme as nuances da ideia de justiça presente em vários segmentos da sociedade.
A plena oportunidade para que o acusado exerça sua defesa no julgamento é, portanto, outro fator que se agrega para justificar a execução imediata da pena. A plenitude de defesa é algo que não se repete nas fases recursais, que, se insista, não revisitam o mérito a não ser em casos excecionalíssimos. A apelação, que na regra geral é ampla e pode provocar a reanálise de tudo o que foi objeto do processo na primeira instância, no júri é muito restrita devido ao princípio da soberania dos veredictos. E os recursos especial e extraordinário, no júri como em qualquer outra situação, só podem ser interpostos se rigorosamente cumpridos seus diversos requisitos restritivos.
Consignamos, por fim, um dado histórico que não pode ser ignorado, principalmente num julgamento emblemático aqui comentado. A doutrina alerta que, em governos ditatoriais, umas das primeiras atitudes do governante é extinguir a soberania dos veredictos. Essa providência sintomática serve para ocultar de todos a lembrança viva de que o poder emana do povo. Vivemos esse cenário sombrio na nossa história recente, mais precisamente em duas oportunidades: em 1937 e em 1969. Na primeira supressão, a garantia foi restaurada apenas no final da década seguinte. Na segunda, a garantia retornou somente com a redemocratização (1988).