Uma das modalidades do denominado “erro de tipo acidental” é o erro na execução, também conhecido como aberratio ictus e disciplinado no artigo 73 do Código Penal:
“Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código”.
Cuida-se, em resumo, do acidente ou erro no uso dos meios de execução e, por consequência, o agente acaba atingindo pessoa diversa da pretendida – embora corretamente representada. Exemplo: João aponta o revólver para Pedro, pretendendo matá-lo, mas, por falta de habilidade no uso da arma, acaba atingindo Alberto, que caminhava próximo do alvo.
O erro na execução pode ter duas consequências:
1) O agente atinge apenas a pessoa diversa da pretendida (aberratio ictus de resultado único): deve ser punido pelo crime, consideradas as condições e qualidades da vítima desejada, e não da vítima efetivamente atingida. Imaginemos que João quisesse matar Pedro, seu irmão, para receber sozinho uma herança. O motivo torpe que qualifica o homicídio é considerado na imputação ainda que apenas Alberto tenha sido atingido.
2) O agente atinge também a pessoa diversa da pretendida (aberratio ictus com unidade complexa ou resultado duplo): deve ser punido pelos dois crimes, em concurso formal.
Nesta espécie de aberratio ictus, diversas podem ser as circunstâncias. Imaginemos que João saque a arma de fogo e, com intenção letal, dispare contra Pedro, atingindo-o juntamente com Alberto. Neste caso, a doutrina tradicionalmente propõe as seguintes soluções:
2.1) ocorrendo a morte de ambos (Pedro e Alberto), há dois crimes: um homicídio doloso consumado (Pedro) e outro culposo (Alberto), em concurso formal próprio (art. 70, 1a parte, do CP).
2.2) resultando somente lesões corporais em ambos, há tentativa de homicídio (Pedro), em concurso formal próprio com lesão corporal culposa (Alberto).
2.3) derivando da conduta de João a morte de Pedro e lesões corporais em Alberto, há homicídio doloso consumado (Pedro) e lesão corporal culposa (Alberto), em concurso formal próprio.
2.4) no caso de lesões corporais em Pedro e morte de Alberto, a doutrina diverge:
1ª corrente: João responde pelo homicídio doloso de Alberto (considerando as qualidades da vítima pretendida) e o crime de lesão corporal é utilizado para aumentar a pena em razão do concurso formal (Damásio).
2ª corrente: o atirador deve ser responsabilizado por tentativa de homicídio de Pedro, em concurso formal com o homicídio culposo de Alberto (Heleno Fragoso).
3ª corrente: deve ser atribuído a João o homicídio doloso consumado de Alberto, em concurso formal com tentativa de homicídio de Pedro. Explica-se que, a princípio, poderia parecer correta a imputação de tentativa de homicídio com relação a Pedro e de homicídio culposo contra Alberto (como conclui a segunda corrente). Se fosse assim, todavia, quando se atingisse terceiro (no caso, Alberto) por erro na execução, seria melhor acertar também o alvo pretendido (Pedro) do que simplesmente o terceiro. Em outras palavras, o erro na execução com resultado duplo seria mais benéfico para o assassino do que se tivesse havido resultado único. Isso porque, atingindo somente Alberto (aberratio ictus com resultado único), ao atirador seria imputado um crime de homicídio doloso consumado (art. 73, primeira parte, do CP). Se é assim, na hipótese de ser também atingido Alberto (pessoa visada), o qual sobrevive, não é razoável a responsabilização por fatos de menor gravidade (o concurso formal entre homicídio tentado e homicídio culposo é menos grave que um homicídio doloso consumado). É dizer: a pena decorrente da aberratio ictus com unidade complexa não pode ser inferior àquela imposta no caso de aberratio ictus com unidade simples (André Estefam).
Julgando um caso de aberratio ictus em que a vítima pretendida havia sido morta e outra pessoa havia sofrido lesões corporais (como no item 2.3 acima), a Sexta Turma do STJ concluiu que o dolo do homicídio visado deve se estender ao crime decorrente de erro, solução a nosso ver equivocada, que, no entanto, já foi adotada também pela Quinta Turma do tribunal:
“[…] Retrata os presentes autos a parte final do art. 73 do CP, quando, além da vítima originalmente visada, terceira pessoa é também atingida, incidindo a regra do concurso formal de crimes. Nesses casos, o elemento subjetivo da primeira conduta, o dolo, projeta-se também à segunda, não intencional, ainda que o erro de pontaria decorra de negligência, imprudência ou imperícia do agente.
Essa foi a conclusão alcançada no voto vencido, proferido no julgamento do recurso em sentido estrito, ora impugnado, segundo o qual, “configurado, na espécie, erro na execução com unidade complexa – ocasião em que, a partir da prática de um crime doloso, sobreveio o resultado intencional e um segundo resultado, não pretendido, decorrente de erro de pontaria -, entendo que este também deverá ser punido na forma dolosa”. Assim, “Praticado o delito originário dolosamente, mostra-se coerente que a modalidade dolosa alcance, também, o outro resultado obtido” (fls. 838-839).
Nesse sentido, esta Corte possui orientação de que “A norma prevista no art. 73 do Código Penal afasta a possibilidade de se reconhecer a ocorrência de crime culposo quando decorrente de erro na execução na prática de crime doloso” (HC 210.696/MS, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 19/09/2017, DJe 27/09/2017). Esclarece o relator do habeas corpus que, “havendo um segundo resultado não pretendido, quando da prática de crime doloso, este também deverá ser punido como crime doloso, ainda que o erro na pontaria decorra de negligência, imprudência ou imperícia do autor. Essa é a opção feita pelo legislador”.
Em análogo erro na execução com duplicidade de resultado, esta Corte Superior já decidiu apenas ser culposa a segunda conduta se a primeira assim for considerada. Confira-se a ementa do julgado:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO SIMPLES E TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. ABERRATIO ICTUS COM DUPLICIDADE DE RESULTADO. ALEGAÇÃO DE TER SIDO A DECISÃO DO JÚRI CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. INOCORRÊNCIA. QUALIFICADORA. CONFIGURAÇÃO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. QUESITAÇÃO. NULIDADE NÃO EVIDENCIADA. I – Não se revela contrária à prova dos autos a decisão tomada pelo Conselho de Sentença que resta apoiada – conforme bem destacado no reprochado acórdão – em provas robustas. II – De outro lado, não há como, na via eleita, buscar, como pretende a impetrante, expungir da condenação a qualificadora do motivo torpe, haja vista que a discussão sobre a sua configuração não se operou, seja no julgamento do recurso de apelação, seja nos arestos relativos às revisões criminais ajuizadas. Assim, ter-se-ía típica hipótese de supressão de instância. III – A quesitação submetida ao Conselho de Sentença, in casu, não revela qualquer mácula, eis que realizada dentro dos parâmetros legais, não se furtando à apreciação do Júri as teses defensivas pertinentes. Por se tratar de hipótese de aberratio ictus com duplicidade de resultado, e não tendo a defesa momento algum buscando desvincular os resultados do erro na execução, a tese de desclassificação do delito para a forma culposa em relação somente ao resultado não pretendido, só teria sentido se proposta também para o resultado pretendido – o que não ocorreu. Ordem denegada. (HC 105.305/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2008, DJe 09/02/2009.)
Assim, deve ser restabelecida a sentença de pronúncia do recorrido como incurso nos arts. 121, § 2º, I e IV, e do art. 121, § 2º, e IV, c/c o art. 14, II, na forma do 73, todos do CP” (REsp 1.853.219/RS, j. 02/06/2020).
Ao que parece, nas decisões mencionadas o tribunal se vale do conceito de dolo in re ipsa, em que o elemento volitivo é presumido e, consequentemente, não precisa ser demonstrado. Mas devemos ter em mente que a estrutura do crime doloso resulta de dois elementos que integram o dolo: o volitivo – isto é, a vontade de praticar a conduta descrita na norma – e o intelectivo – traduzido na consciência da conduta e do resultado. Sem consciência e vontade não há crime doloso.
Se, por outro lado, esses elementos se fazem presentes, não se aplica o art. 73 do Código Penal porque, como vimos, na aberratio o resultado relativo à pessoa não visada decorre de um erro no momento da execução do crime. Somente pode haver, portanto, aberratio ictus com resultado duplo quando o terceiro é atingido por erro ou acidente. Se o executor atua com dolo – ainda que eventual – em relação ao terceiro, não é possível sustentar a ocorrência de um erro na execução. Finalizamos com a lição de Paulo José da Costa Júnior:
“A que título é imputado ao agente o plus não desejado
O dolo deve endereçar-se à pessoa visada (ou ao fato-objeto pretendido) e somente em direção a ela. Exclui-se a possibilidade de o dolo voltar-se a pessoa diversa. O plus do crime previsto no art. 73 não é atribuído ao agente, mesmo que não desejado, mas somente se não desejado. Não se poderá́, pois, conceber um comportamento doloso qualquer com respeito à pessoa atingida e não visada. Nem mesmo o dolo, em sua forma eventual, de menor intensidade.
[…]
Outros sustentam a existência de um dolo único, que opera em raio mais amplo, compreendendo todos os eventos. Seria, assim, uma preterintencionalidade na quantidade dos eventos. Tal é inadmissível. A graduação do dolo pode dizer respeito à intensidade. Jamais à extensão” (José, COSTA JR., Paulo José da; COSTA, F. Curso de Direito Penal, 12ª ed. Editora Saraiva, 2010, p. 283-4).
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Manual de Direito Penal (parte geral)
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