A recente Lei 14.550/23 promoveu importantes e estratégicas alterações na Lei da Maria da Penha, principalmente para fazer cessar questionamentos quanto à autonomia das medidas protetivas, a existência ou não de prazo para a sua vigência e âmbitos de aplicação da lei.
Trata-se de uma resposta legislativa às constantes decisões que ora afastavam a incidência da norma, ora negavam proteção com base em análises factuais e muitas vezes marcadas por estereótipos, como o de que mulher “usava” a lei para conseguir vantagens econômicas ou afastamento arbitrário do agressor do lar.
No Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, de aplicação obrigatória graças à Resolução do CNJ 492/2023, de 17 de março, consta que “a ideia de estereótipos de gênero é muito importante, na medida em que, quando permeiam – consciente ou inconscientemente – a atividade jurisdicional pode reproduzir inúmeras formas de violência e discriminação”. Esses estereótipos estão presentes nas causas civis e criminais, pois
“Ao lado do ideal romântico da figura materna, o gênero feminino, sempre que não se encaixa na expectativa social, é rotulado com estereótipos como o da vingativa, louca, aquela que aumenta ou inventa situações para tirar vantagem, ou seja, a credibilidade da palavra e intenções da mulher sempre são questionadas.
Não raras vezes, o sistema de Justiça não só desprotege mulheres, como as expõe a desnecessário procedimento revitimizante, transformando-as em objeto de prova para conferir – ou não – credibilidade ao seu depoimento. Com essa postura, muitas mulheres retornam ao silêncio, convivendo com o risco de morte.
Conceitualmente, feminicídio é uma morte evitável e um crime de Estado, em que a omissão de autoridades determina o destino de mulheres. Marcela Lagarde, criadora desse conceito com base nas mortes em Juarez/México[1], ressalta que “Há feminicídio quando o Estado não dá garantias para as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer. Mais ainda quando as autoridades não realizam com eficiência suas funções. Por isso o feminicídio é um crime de Estado.”[2]
No Brasil, os índices de feminicídio, que estavam em queda, voltaram a crescer. Conforme dados do Monitor da Violência, em 2022 ocorreram 1,4 mil feminicídios, o que representou um aumento de 5%. De se notar que, no mesmo período, as mortes em geral caíram 1% no país [3].
É sabido que medidas protetivas e o acolhimento de mulheres podem evitar a sua morte.
Na pesquisa Raio X do Feminicídio, de 2016, constatou-se que 97% das vítimas de feminicídio, consumado ou tentado, não estavam sob o manto de qualquer medida protetiva[4]. Pesquisa mais recente revelou que, em 2022, ocorreram 187 feminicídios em São Paulo, sendo que 161 vítimas não tinham em seu favor qualquer medida de proteção. Em Minas Gerais, de 164 mulheres mortas, 137 não tinham amparo[5]. Assim, a grande maioria das vítimas fatais não rompeu o silêncio ou buscou ajuda, o que demonstra, por óbvio, a efetividade das medidas para salvar vidas.
Essa realidade também se percebe em outros países. Na Espanha, por exemplo, que tem, ao lado do Brasil, uma das melhores leis do mundo de proteção às mulheres, ocorreram 38 casos de feminicídio íntimo em 2022, dos quais apenas 15% das mulheres tinham medidas protetivas.
Em momento algum queremos afirmar que as medidas protetivas, por si sós, livram as vítimas da morte. Mas seu deferimento, em regra, dificulta a ocorrência do resultado mais gravoso, servindo de camada de proteção: “Existe uma relação direta entre feminicídio, negativa de medida protetiva e morte de mulheres negras, porque nos estados onde há um aumento de feminicídio, há também um número elevado no percentual de negativa de medida protetiva”, conforme pesquisa realizada por Rosely Pires da Universidade Federal do Espírito Santo.[6]
Feita essa introdução, vamos, em seguida, analisar as principais modificações geradas com o advento da Lei 14.550/2023, bem como nossas conclusões extraídas a partir do texto legal, evidenciando-se o papel da Lei Maria da Penha como um instrumento apto a modificar a história da violência contra mulheres em nosso país.
1 – MEDIDAS PROTETIVAS: alteração do artigo 19 da Lei da Maria da Penha
Foram introduzidos os parágrafos 4º, 5º e 6º no artigo 19, buscando o legislador, mais uma vez, ser claro não apenas quanto ao manejo das medidas protetivas, mas também quanto à sua natureza jurídica.
Antes, porém, é importante deixar registrado que não se operou qualquer ampliação das atribuições da autoridade policial, nem alteração da competência material e territorial da autoridade judiciária no trato das medidas protetivas.
Na Lei Maria da Penha o atendimento pela autoridade policial tem regramento próprio e está topograficamente situado no Capítulo III, artigos 10 a 12. Nesse Capítulo, há a previsão de possibilidade de deferimento de medida protetiva pela autoridade em situação bem específica: apenas a medida de afastamento do lar e nos locais em que não há juízes.
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia (grifo nosso).
Quisesse o legislador ampliar a atribuição da autoridade policial, a teria feito expressamente ou inserido dispositivo no Capítulo III. Não foi o que ocorreu: modificou pontualmente o art. 19 que trata do procedimento judicial.
Essa alteração tem um foco certo: garantir a proteção das mulheres, afastando interpretações que restringem o alcance da Lei Maria da Penha por parte de autoridades judiciárias.
Conforme constou da Justificativa do Projeto apresentada pela Senadora Simone Tebet:
“Destaque-se, por fim, que diversos juízes e juízas se recusam a conferir um caráter autônomo às medidas protetivas de urgência, condicionando a vigência delas à existência de um inquérito policial ou algum processo cível ou criminal (…)
As MPUs não são penas impostas aos agressores, mas sim garantias em favor das mulheres que se encontram em situação de violência ou de ameaça. Diante da necessidade de retomar essa garantia de proteção pessoal às mulheres que sofrem violência doméstica e familiar, apresenta-se esta proposta de alteração legislativa com o objetivo de explicitar o espírito da Lei Maria da Penha: todas as formas de violência contra as mulheres no contexto das relações domésticas, familiares e íntimas de afeto são manifestações de violência baseada no gênero, que invocam e legitimam a proteção diferenciada para as mulheres. Além disso, este projeto de lei busca tornar inquestionável a proteção que oferece à mulher mesmo na hipótese de atipicidade criminal do ato de violência, de ausência de prova cabal, de risco de lesão à integridade psicológica por si só e independentemente da instauração de processo cível ou criminal” (grifo nosso)
Não houve também alteração da competência para decidir a respeito das medidas protetivas civis ou criminais, que continuam a pertencer ao Juizado de Violência Doméstica ou, na sua falta, às Varas Criminais nos termos do artigo 33[7].
Quanto à competência territorial, há o foro de eleição por parte da vítima nos termos do artigo 15, podendo optar pelo Juizado do seu domicílio ou residência, do lugar do fato em que se baseou a demanda, do domicílio do agressor (incisos I, II e III, art. 15 da Lei Maria da Penha).
Em recente decisão, o STJ decidiu pela competência do Juízo Imediato para as medidas protetivas:
STJ: “A aplicação do princípio do juízo imediato na apreciação dos pedidos de medidas protetivas de urgência não entra em conflito com as demais disposições da Lei n. 11.343/06. Ao contrário, essa medida facilita o acesso da mulher vítima de violência doméstica a uma rápida prestação jurisdicional, que é o principal objetivo perseguido pelas normas processuais especiais que integram o microssistema de proteção de pessoas vulneráveis que já se delineia no ordenamento jurídico brasileiro.
A competência para examinar as medidas protetivas de urgência atribuída ao juízo do domicílio da vítima não altera a competência do juízo natural para o julgamento de eventual ação penal por crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, que deve ser definida conforme as regras gerais fixadas pelo Código de Processo Penal” (CC n. 190.666/MG, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 8/2/2023, DJe de 14/2/2023.)
Vamos, agora, esmiuçar as alterações.
I – Cognição sumária pelo depoimento da vítima (art. 19, §4º)
Nos termos da Lei 14.550/23, para a concessão das medidas protetivas é suficiente o depoimento da vítima. Assim, ficam afastados argumentos de ausência de testemunhas, laudos periciais ou outros elementos de convicção. Aliás, embora o depoimento da vítima já seja tratado como prova na legislação, aqui surge um regramento específico que estabelece a prioridade desse elemento para aferir a existência de indícios de violência (ainda que não tipificada) e o perigo.
Não estamos fomentando a exumação do conceito de “rainha das provas”, mas reconhecendo, a exemplo do que o fez o legislador, que a palavra da vítima é um elemento central e relevante.
Importante mencionar que, em razão do trauma, a memória da vítima e seu depoimento podem ser fragmentados, apresentar algumas falhas ou inconsistências, o que não retira a validade dessa prova, centrada apenas na existência de violência e perigo. Com o trauma, há um “efeito avassalador ” , que pode “alterar o sistema psíquico do sujeito (no caso, a vítima), ameaçar sua percepção sobre o evento crítico e, de modo último, fragmentar sua coesão mental (Perrota, 2019)”[8].
Na seara da violência doméstica e familiar contra a mulher, a forma como é valorada a versão da vítima merece atenção especial. De acordo com o STJ, nesse tipo de crime, a palavra da ofendida tem especial relevância para fundamentar o recebimento da inicial ou a condenação, pois normalmente são cometidos crimes sem testemunhas. Ora, se suficiente para fundamentar tais decisões, parece mais do que razoável, numa análise sumária, autorizar a concessão de medidas protetivas.
Nesse mesmo sentido, temos o enunciado 45 do FONAVID:
ENUNCIADO 45 – As medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/2006 podem ser deferidas de forma autônoma, apenas com base na palavra da vítima, quando ausentes outros elementos probantes nos autos.
Como as medidas protetivas firmaram-se na lei em comento como autônomas, a referência à cognição “sumária” destina-se a agilizar e fundamentar a decisão, dispensando-se procedimento penal (seja inquérito, seja processo).
A decisão pode ser alterada a todo momento, diante de novos fatos. Ou seja, haverá sempre a possibilidade de alteração da decisão, que não possui, por isso, um caráter de definitividade.
Não se pode condicionar a decisão ao preenchimento do Formulário Nacional de Avaliação de Risco, como tem acontecido em alguns juízos. Esse formulário foi criado para proteger a mulher e não para burocratizar a decisão em medidas protetivas. Nesse sentido:
ENUNCIADO 54: “As medidas protetivas de urgência deverão ser analisadas independentemente do preenchimento do Formulário Nacional de Avaliação de Risco, o qual deverá ser aplicado, preferencialmente, pela Polícia Civil, no momento do registro da ocorrência policial, visando a celeridade dos encaminhamentos da vítima para a rede de proteção” (Aprovado no XI Fonavid – São Paulo)
II – Presunção do perigo (art. 19, §4º) e fundamentação vinculante
O artigo 19, §4º, estabelece que as medidas só podem ser indeferidas se, na avaliação da autoridade, inexistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.
Sem dúvida, aqui temos um dos pontos mais controvertidos da nova lei porque pode aparentar querer digladiar com a autonomia do Poder Judiciário.
Vincular autoridades judiciárias a uma interpretação ou fundamentação não é cenário novo no nosso direito.
Na Constituição Federal já existe previsão de Súmulas Vinculantes, que limitam a interpretação judicial a respeito de temas controvertidos e relevantes. Como ressalta o Ministro Gilmar Mendes, “a súmula vinculante é um instituto de caráter racionalizador”.
Não há exclusão da apreciação judicial, mas sim a inversão do raciocínio normalmente utilizado: ao invés de se fundamentar pela existência de perigo, as autoridades devem focar, em caso de indeferimento, na inexistência de perigo.
III – Autonomia das medidas protetivas (art. 19, §5º)
Embora o STJ tenha entendimento de que parte das medidas protetivas têm natureza de cautelar criminal, com a nova lei, todas as medidas protetivas – por expressa previsão legal – têm natureza cível, já que podem ser deferidas independentemente de registro de Boletim de Ocorrência, inquérito policial instaurado ou processo criminal em curso[9].
Thiago Pierobom de Ávila, há tempos já lecionava que a medida protetiva de urgência deve ser etiquetada como tutela cível de urgência, derivada do direito fundamental de proteção contra a violência, portanto guiada pelo princípio da precaução[10]. Essa diferença quanto à natureza jurídica traz, de acordo com a correto raciocínio do citado autor, consequências importantes às medidas protetivas de urgência que as diferenciam das medidas cautelares criminais:
(i) as medidas protetivas de urgência podem ser concedidas independentemente da configuração criminal do ato de violência.
(ii) as medidas protetivas de urgência independem de processo criminal principal, podendo ser concedidas mesmo que a vítima ou seu representante legal não desejem apresentar representação (o que impediria a instauração de investigação criminal) ou mesmo que a investigação seja arquivada por insuficiência de provas.
(iii) as medidas protetivas de urgência não se limitam à jurisdição criminal, podendo ser concedidas, inclusive, por um juiz com competência cível.
(iv) no processo criminal, a dúvida sempre beneficia o réu. Todavia, para uma tutela de proteção de urgência de direitos fundamentais, se não há certeza de que a vítima está suficientemente protegida, na dúvida se protege. Portanto, as medidas protetivas de urgência são guiadas pelo princípio da precaução e pela lógica in dubio pro tutela.
(v) as medidas protetivas devem ser mantidas em vigor enquanto forem necessárias à proteção à mulher.
Na maioria dos casos, no momento em que leva ao conhecimento das autoridades a violência sofrida, a vítima deseja apenas sobreviver, livrar-se do ciclo de agressões que a atormenta, sem necessariamente ver processado o agressor. Mulheres vítimas nutrem sentimentos de amor-ódio pelo agressor, que alterna comportamentos violentos com comportamentos gentis. Além disso, mulheres em situação de violência, não raras vezes, terminam as relações enfraquecidas psicológica e economicamente, sem apoio da família. Condicionar o deferimento das medidas protetivas ao registro de ocorrência ou à existência de um procedimento oficial do Estado pode importar na tomada de decisão difícil, colocando a vítima sob pressão e enorme sacrifício pessoal (escolha de Sofia): viver ou ser revitimizada (campo fértil para violência institucional)?
IV – Duração das medidas (art. 19, §6º)
Desdobramento lógico da sua autonomia, prevê o art. 19, §6º, que “as medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.”
Essa alteração resolve uma antiga divergência quanto à duração do manto de proteção. Não há medidas por prazo determinado, nem vinculação das medidas a um inquérito, processo ou ao cumprimento da pena. Conclusão clara, óbvia e ululante: as medidas estão atreladas ao perigo, e não ao procedimento.
Em momento algum estamos afirmando (ou fomentando) a eternização da medida. A questão deve ser examinada à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
Como já salientado pela coautora deste artigo, Valéria Scarance, na sua obra sobre a Lei Maria da Penha, deve ser determinado um período mínimo para reavaliação do perigo, tal como ocorre com as medidas de segurança e prisão preventiva:
“d) reavaliação periódica do perigo e da manutenção das medidas
As medidas protetivas estão vinculadas ao perigo e não ao procedimento. Contudo, não podem ter uma duração infinita, sugerindo-se que, na decisão, conste o prazo mínimo para a reavaliação, tal como ocorre em relação às medidas de segurança. O ideal é que, periodicamente, seja realizada nova avaliação de risco para se verificar a necessidade e adequação das medidas anteriormente deferidas, que poderão ser substituídas ou revogadas. Como já salientado anteriormente, a decisão não faz coisa julgada e poderá ser modificada a todo momento, diante da alteração dos fatos”[11]
Esse entendimento foi adotado pelo STJ
“Levando em conta a impossibilidade de duração ad eternum da medida protetiva imposta – o que não se confunde com a indeterminação do prazo da providência -, bem como a necessidade de que a proteção à vítima perdure enquanto persistir o risco que se visa coibir – aferição que não pode ser realizada por esta Corte, na via exígua do writ -, é caso de se conceder a ordem de habeas corpus, ainda que em menor extensão, a fim de que, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, o Magistrado singular examine, periodicamente, a pertinência da preservação da cautela imposta, não sem antes ouvir as partes. Ordem parcialmente concedida para tornar por prazo indeterminado a medida protetiva de proibição de aproximação da vítima, revogando-se a definitividade estabelecida na sentença condenatória, devendo o Juízo de primeiro grau avaliar, a cada 90 dias e mediante a prévia oitiva das partes, a necessidade da manutenção da cautela” (STJ – HC: 605113 SC 2020/0203237-2, Data de Julgamento: 08/11/2022, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/11/2022).
Não bastasse, para a revogação da medida, deve-se ouvir a vítima, conforme decisão recente do STJ no Recurso Especial 1775341/SP, julgado em 12 de abril de 2023.
2. Aplicação a todas as violências contra a mulher nos âmbitos afetivo, doméstico e familiar.
Com o advento no artigo 40-A, inserido pela Lei 14.550/23, o que determinará a aplicação da Lei Maria da Penha é um fator objetivo – contexto afetivo, doméstico e familiar -, presumindo, nesses ambientes, a violência de gênero (preconceito, menosprezo ou discriminação quanto ao gênero feminino).
Prevê a Lei:
Art. 40-A. Esta lei será aplicada a todas as situações previstas no art. 5º., independentemente da causa ou motivação dos atos de violência, ou da condição do ofensor ou da ofendida.”
A redação vai despertar debates, tais como: a presunção anunciada no referido artigo é relativa ou absoluta?
Embora a quase totalidade dos casos de violência no contexto doméstico tenha um viés de gênero, já que o machismo e a discriminação integram o inconsciente coletivo, é possível ocorrer uma situação excepcional em que uma violência comum apenas “migrou” para o contexto doméstico.
Como existem consequências criminais, não se pode ignorar que, mesmo excepcionalmente, pode ocorrer uma infração penal em contexto doméstico que não seja direcionada ou não atinja mais diretamente a mulher. Diante desse quadro, por cautela, sugere-se reconhecer que se trata de presunção relativa (juris tantum).
Ao reconhecer a presunção relativa, o legislador estabelece que determinada situação é considerada verdadeira e só pode ser afastada diante de provas em contrário. Em outras palavras, trata-se de uma presunção de que a violência nesses contextos é uma violência de gênero, salvo quando ocorrer a demonstração inequívoca de que aquele ato não atingiu ou visou a vítima mulher.
O ônus da prova cabe ao agressor (fato modificativo), que não poderá trazer aos autos elementos impertinentes e estranhos ao processo ou que importem em violação da intimidade ou vida privada para afastar competência (Lei Mari Ferrer, art. 400-A CPP).
A autoridade judiciária, em razão do princípio da proteção e da vulnerabilidade da mulher nesse contexto, não poderá afastar a incidência da lei com base em entendimentos pessoais, mas somente – e excepcionalmente, repita-se – quando houver provas aptas a afastar uma presunção legal. Inclusive, nos crimes envolvendo violência contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, a investigação, ab initio, deve encarar que o fato foi cometido em situação de violência de gênero.
O entendimento pela presunção absoluta (e não relativa, como sustentamos) poderia levar a uma aplicação muito abrangente (e intransigente) da norma, desvirtuando o espírito de proteção da mulher e causando uma indevida migração de processos comuns aos Juizados de Violência Doméstica, que necessitam de agilidade para deferir medidas e outras providências e desta forma prevenir os feminicídios.
Para reforçar nossa posição, citamos alguns casos – reais – antes submetidos a um Juízo Comum e que seriam encaminhados ao Juizado de Violência Doméstica caso adotado o entendimento da presunção absoluta: a filha, mediante fraude, simula um sequestro para que seja pago resgate por seus genitores; traficante guarda drogas em sua residência e intimida todos os familiares (homens e mulheres) para que não o denunciem; integrante de organização criminosa especializada em lavagem de dinheiro usa o nome de empregada doméstica para ocultar bens sem que ela saiba. Nesses casos, o gênero da genitora, das familiares mulheres e da funcionária não foram determinantes.
Essa discussão tem um aspecto prático, de caráter processual, importante. Adotada a tese da presunção absoluta, feitos envolvendo crime contra mulher no ambiente doméstico e familiar em que não foi detectada a violência de gênero serão imediata e automaticamente encaminhados para a Vara da Violência Doméstica e Familiar, quando não encerrada instrução (princípio da identidade física do juiz).
Esse superlotação vai trazer prejuízos, notadamente na celeridade processual que se espera de uma vara especializada. A duração razoável do processo é não somente importante para os réus, como também para as vítimas. No contexto de violência afetiva, doméstica e familiar a agilidade do processo é fundamental. Vale destacar o que foi decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso BARBOSA DE SOUZA vs. BRASIL[12]
“A Corte indicou que o direito de acesso à justiça em casos de violações aos direitos humanos deve assegurar, em tempo razoável, o direito das supostas vítimas ou de seus familiares a que se faça todo o necessário para conhecer a verdade sobre o ocorrido e investigar, julgar e, se for o caso, sancionar os eventuais responsáveis. Outrossim, uma demora prolongada no processo pode chegar a constituir, por si mesma, uma violação às garantias judiciais” (grifo nosso).
Por fim, alertamos que, da mesma forma que se determina o foro prevalente nos casos de conexão e continência em razão da maior gravidade, complexidade ou especialidade, também nos crimes contra a mulher o juízo prevalente não pode ser ignorado, independentemente da corrente que se adota (presunção absoluta ou relativa da violência de gênero). Contudo, só haverá unificação de processos se os crimes tiverem vínculo estreito com a infração contra a mulher. Para ficar mais claro o que estamos afirmando, vamos nos socorrer de uma situação hipotética, mas que coincide com inúmeros casos do dia a dia forense. Imaginemos um crime de tortura praticado por membros de uma organização criminosa em face de um agente “desertor”. Durante a tortura, a esposa do desertor clama por piedade e é ameaçada pelo líder da organização, seu irmão. Há, assim, vínculo família. Esses crimes (organização criminosa, tortura e ameaça) vão ser julgados na Vara da Violência Doméstica e Familiar? Óbvio que não. Deve ser determinado o desmembramento em relação às infrações penais que não tiverem um vínculo estreito com a condição de mulher da vítima (art. 80, parte final do CPP).
CONCLUSÃO
A Lei 14.550/23 era necessária. Assim como foi necessário constar da Constituição Federal a igualdade entre homens e mulheres perante a lei, após longa caminhada para a implementação da Lei Maria da Penha, constatou-se a necessidade de se dizer o óbvio: mulheres precisam de proteção nos contextos afetivo, doméstico e familiar. Qualquer interpretação restritiva é inconstitucional, inconvencional e traz para o Estado a responsabilidade pela morte violenta de mulheres.
[1] LAGARDE, Marcela. Del femicidio al feminicidio. Disponivel em: file:///C:/Users/Val%C3%A9ria/Downloads/Dialnet-DelFemicidioAlFeminicidio-2923333.pdf. Acesso em: 07 mar 2023.
[2] ONU MULHERES. Diretrizes Nacionais Feminicídio – investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero a morte violenta de mulheres. Disponível em: <https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio_FINAL.pdf>. Acesso em: 22 mar 2021.
[3] GLOBO. Brasil bate recorde de feminicídios em 2022 com uma mulher morta a cada seis horas. Disponivel em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2023/03/08/brasil-bate-recorde-de-feminicidios-em-2022-com-uma-mulher-morta-a-cada-6-horas.ghtml. Acesso em 11 mar 2023.
[4] SCARANCE FERNANDES. Valéria Diez (Coord). Raio X do Feminicídio: é possível prevenir a morte de mulheres. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_de_Genero/Feminicidio/RaioXFeminicidioC.PDF. Acesso em: 27 mar 2023.
[5] GLOBO. Exclusivo: medidas protetivas salvam vidas de mulheres vítimas de violência doméstica. Disponível em https://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2023/03/07/exclusivo-medidas-protetivas-salvam-vidas-de-mulheres-vitimas-de-violencia-domestica.ghtml. Acesso em: 22 mar 2023.
[6] UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO (UFES). Pesquisa relaciona recusa de medidas protetivas a aumento de casos de feminicídio. Disponível em: https://www.ufes.br/conteudo/pesquisa-relaciona-recusa-de-medidas-protetivas-aumento-de-casos-de-feminicidio. Acesso em: 17 abr 2023.
[7] Art. 33 da Lei Maria da Penha: Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
[8] SCARPATI, ARIELLE SAGRILLO. Violência de gênero como uma forma de trauma: reflexões para o acolhimento das vítimas. Apud: SARRUBBO, Mario Luiz; ROMANO, Michel B; LEITÃO, Patrícia de Carvalho; CHAKIAN, Silva (org). Ministério Público Estratégico, vol. 1. São Paulo: Foco, 2022, 136.
[9] Essa conclusão não afasta a possibilidade de o autor da violência ingressar com habeas corpus para os casos de restrição à sua liberdade, já que essa ação não é exclusiva para a área criminal e pode ser impetrada inclusive quando há ato coator por parte de particular.
[10]Sobre este tema, ver: ÁVILA, Thiago Pierobom de. Medidas protetivas da Lei Maria da Penha: natureza jurídica e parâmetros decisórios. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 157, p. 131-172, 2019.
[11] SCARANCE FERNANDES, Valéria Diez. Lei Maria da Penha: o processo penal no caminho da efetividade, 4ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2022.
[12]Corte Interamericana de Direitos Humanos. CASO BARBOSA DESOUZA Vs Brasil. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 19 abr 2023.