O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97) tem sofrido diversas modificações, dentre as quais destacamos as introduzidas pelas Leis nº 12.971/14 e 13.281/16, especificamente no que concerne ao homicídio culposo e à participação em corrida, disputa ou competição automobilística, em via pública, não autorizada pela autoridade competente (“racha”).
Originalmente, o art. 302 da Lei nº 9.503/97 punia, no caput, com pena de detenção de dois a quatro anos, a conduta de praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor e, no parágrafo único, anunciava causas de aumento de pena. A partir da vigência da Lei nº 12.971/14, ao caput do art. 302 se somaram dois parágrafos: o primeiro, anunciando as mesmas majorantes do revogado parágrafo único, e o segundo, circunstâncias qualificadoras do crime.
As novas circunstâncias qualificadoras se referem ao fato de o agente causar a morte conduzindo veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determinasse dependência ou participando, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, hipótese em que a pena passava a ser de reclusão de dois a quatro anos. Percebam que a então nova legislação não alterava o quantum da pena em relação ao caput, mas modificava sua natureza, que passava de detenção para reclusão, com a clara intenção de possibilitar ao juiz a imposição de regime inicial fechado nos casos de agente reincidente, providência impossível na figura básica do crime diante da vedação a que a pena de detenção tenha seu início no regime mais severo.
Ainda de acordo ainda com a ordenação da Lei nº 12.971/14, o art. 308 passou a ser punido mais severamente, deixando de ser de menor potencial ofensivo, bem como recebeu dois parágrafos: o primeiro qualificando o crime e impondo pena de reclusão de três a seis anos, se de sua prática resultar lesão corporal de natureza grave; o segundo, também qualificador, estabelecendo pena de reclusão de cinco a dez anos se da conduta do caput resultar a morte. Em ambos os casos, a lei estabelece que estas disposições incidem se as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo (a lesão ou a morte hão de ser, necessariamente, culposas).
Essas modificações introduzidas pela Lei nº 12.971/14 causaram dois problemas: um relativo ao concurso entre o homicídio e a embriaguez na direção de veículo automotor, outro concernente ao conflito entre o § 2º do art. 302 e o §2º do art. 308:
a) Homicídio x embriaguez: a embriaguez na direção de veículo automotor era, originalmente – além de infração penal autônoma tipificada no art. 306 –, causa de aumento de pena do homicídio culposo. Posteriormente, a causa de aumento foi revogada pela Lei nº 11.705/08, com o propósito de tornar possível o concurso de crimes entre o homicídio e a embriaguez. Com a introdução da qualificadora do § 2º do art. 302, promovida pela Lei nº 12.971/14, o concurso de crimes se tornou novamente impossível, pois a embriaguez servia para qualificar o homicídio. Por isso, o concurso entre os delitos seria considerado bis in idem.
b) Homicídio culposo qualificado x competição não autorizada qualificada: vigorando a Lei nº 12.971/14, havia disposições conflitantes a respeito da morte culposa, no contexto de competição não autorizada, cometida na direção de veículo automotor. Neste caso, indagava-se: quando da competição ilegal decorresse a morte, o agente tinha sua conduta subsumida ao art. 302, § 2º ou ao art. 308, § 2º? E havia dois posicionamentos: 1) devia ser aplicado o art. 302 porque, instalado o conflito, era a norma mais favorável ao agente; 2) devia ser aplicado o art. 308, pois, no desencadeamento dos fatos, o que ocorre primeiro é a competição ilegal; o condutor do veículo que participa, em via pública, de competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, causando perigo de dano à incolumidade alheia, consuma o crime do art. 308, independentemente de qualquer resultado lesivo a terceiro; se há morte, esta provém daquele fato. Ora, se a morte decorre do fato consumado, é natural que este seja qualificado pelo resultado mais grave. Seria irrazoável, e ilógico, considerar a competição como qualificadora do crime de homicídio se, em todos os casos, a morte havia de ser decorrência involuntária da conduta anterior. Tratava-se, simplesmente, de prestigiar a aplicação do princípio da especialidade.
Para dirimir estas questões, a Lei nº 13.281/16 revogou o § 2º do art. 302. Assim, o homicídio cometido na direção de veículo automotor por agente embriagado enseja novamente o concurso entre os arts. 302 e 306. Além disso, não há mais nenhuma dúvida de que, ocorrida a morte culposa em competição não autorizada, o crime é o do art. 308, § 2º.