Júri da BOATE KISS: todos condenados.
Dois bons e inteligentes amigos vieram-me maldizer o júri depois dessa decisão. Dentre os argumentos, um diz respeito ao fato de os jurados serem leigos e outro ao fato de se submeterem facilmente à pressão da mídia.
Discordo francamente do veredito, não acho que os réus deveriam ter sido condenados por homicídio doloso (ou intencional).
Todavia, tampouco concordo com os argumentos dos amigos.
Um juiz talvez não tivesse tido uma decisão muito distinta da que tomada pelos jurados nesse episódio.
“Ora, mas a decisão foi injusta”. A questão da justiça ou injustiça é um “mal” inerente à tomada de qualquer decisão em si, judicial ou não. Qualquer decisão pode ser justa ou injusta, a depender do ponto de vista. Não somente porque veio de um “juiz leigo”, não versado nas quadras da lei, é que uma decisão não é justa ou é mais injusta que qualquer outra.
Não se deslembre que antes de chegar ao júri nenhum juiz ou tribunal teve coragem de impedir a marcha do processo da BOATE KISS, determinando que o caso fosse julgado como homicídio culposo (quando não há intenção) e, portanto, que não fosse remetido ao “tribunal popular”. Isso era perfeitamente possível, segundo a lei.
Culpar o júri, agora, é falta de senso mínimo das coisas.
A decisão, injusta para alguns, mas não para todos, nada tem que ver com o fato de os jurados serem pessoas leigas.
Decisões absurdas são ditadas por juízes “técnicos” (ou togados) todos os dias no Brasil. Absurdas a não mais poderem, diga-se.
Sim, é possível que os jurados tenham se sentido sensíveis ao alarido da imprensa? Sim, é possível. Mas também é possível que tenham sido tocados pela dor das vítimas e familiares, pelo evidente descaso dos réus, pelo número de vítimas, pelos longos anos que se passaram desde a data dos fatos? Sim, também é possível. É possível que qualquer “juiz togado”, no caso, se sentisse igualmente tocado? Sim, é possível, já que o “juiz togado” é feito de carne e osso e possui sentimentos humanos. Aliás, já está comprovado que nenhuma decisão é totalmente racional, ou seja, divorciada por completo da emoção. Nenhuma!
Veja-se que o Ministério Público, por exemplo, sempre sustentou a tese do homicídio doloso. Uma gama de promotores de justiça atuou no caso, sempre postulando essa tese. São eles leigos? Devemos, então, terminar com o Ministério Público? Seria rematada idiotice propor algo do gênero.
Logo, não se pode tachar a decisão dos jurados de “absurda”.
A pressão da mídia é sem dúvida poderosíssima. Porém, a “justiça togada” não é de maneira nenhuma imune a ela. As tais “operações” e as muitas decisões estapafúrdias tomadas em seu âmbito não nos desmentem. As tantas decisões de juízes singulares anuladas pelas cortes superiores nos últimos anos, igualmente.
Em alguns anos de experiência no tribunal do júri pude presenciar menos decisões absurdas ou insensatas dos “juízes leigos” do que dos juízes togados. Acredito que muitos promotores e advogados do tribunal do júri, Brasil afora, tenham a mesma sensação.
Curioso notar, aliás, que boa parte dos detratores do júri – inclusive agora – são profissionais que não têm (ou têm muito pouca) intimidade com a instituição. Boa parte corre dele como o diabo corre da cruz, por variadas razões, na maioria delas por medo de enfrentar a tribuna.
É que a tribuna do júri não é lugar para verborragia técnica; aquele que se presta a falar ao jurado deve ter a consciência de que fala ao povo; não deve ser vulgar, mas tampouco professoral e cansativo. Alguns detratores, no entanto, adoram a soberba, a pompa, a extravagância dos termos, do juridiquês, do latim que desconhecem; se jactam de uma pretensa cultura jurídica que não detêm, em verdade. Falassem aos seus, pouco se compreenderia; quando falam na tribuna, causam sonolência. Sofrem, pois. Resta-lhes, desse modo, descontar na instituição do júri a falta de talento para a oratória inteligível.
É por isso que o sucesso no júri não é para todos; é por isso que muitos lhe têm pavor; é por isso que ele é mal visto por alguns no meio jurídico. Estar e trabalhar no tribunal do júri não é mesmo coisa das mais fáceis. Não se compara à rotina dos gabinetes, das salas de audiências, do papel frio dos autos do processo. No júri há vida, há calor humano, há embate; alegra-se e se entristece; há bons e há maus dias. Tudo isso o profissional do júri vivencia. Esse vaivém de emoções afasta muita gente.
A “justiça técnica” teve (e terá) todos os meios para reparar uma injustiça que sempre se soube que poderia ocorrer; omitiu-se até aqui, todavia. A decisão do júri, nesse caso, tão apenas fez perpetuar a injustiça que já vinha sendo praticada e não corrigida. Nada, portanto, garante que a “justiça técnica” teria uma decisão melhor do que teve o júri de Porto Alegre. Nada, também, é capaz de garantir que inocentes não estejam sendo condenados ou culpados sendo absolvidos todos os dias pela “justiça técnica” deste país.
O jurado ser um leigo não interfere na noção que ele tem sobre as coisas da vida – e o crime é dessas coisas da vida. Para decidir se a prova apresentada pelo promotor é melhor do que aquela apresentada pelo advogado não é preciso ter conhecimento técnico, necessariamente. O jurado sabe, pela experiência que amealhou na vida, se um determinado relato é ou não é verdadeiro.
A propósito, não há nenhuma evidência séria de que a tecnicidade ou tecnicalidade seja um componente mais eficiente do ato decisório. A tecnicidade não garante que as manifestações de juízes, promotores e advogados não estejam impregnadas de heurísticas, vieses, preconceitos e tudo aquilo que contamina para pior um julgamento.
Os julgamentos pelo júri (ou por um colegiado de juízes, leigos ou não) são adotados há séculos pelas nações mais civilizadas do mundo. Não penso que elas possam estar há tanto tempo erradas.
A Justiça, qualquer que seja ela, pode ser injusta, justamente porque é feita pelos homens. Mas, de todas as “Justiças”, é a do tribunal do júri a mais transparente. Ali não há conchavos, reuniões “secretas” ou combinações prévias entre julgador e acusador.
Já vai distante a inesquecível lição do grande Francesco Carnelutti, em sua obra “As misérias do processo penal”:
“[…] os tribunais do júri são compostos em parte, aliás na menor, de juristas, e o restante por leigos do direito. O perigo está precisamente nisto: em que, acostumados ao tipo, o juiz jurista esquece o homem que vive em um mundo abstrato em vez de um mundo concreto; que troca os espantalhos com os homens e os homens com os espantalhos”.
Querer agora, no caso da “Boate Kiss” e de tantos outros, maldizer a instituição do júri e o jurado pelo resultado – injusto, a meu ver, mas não absurdo – é pura desonestidade intelectual. Essa grita toda reflete a ojeriza que muitos de nós, operadores e acadêmicos do Direito, sentimos da gente “comum” e de suas decisões.
Mostra um pouco do que somos e do quão afastados estamos, por vezes, do destinatário primeiro de nossa existência, o povo.