A Lei 13.104/15 inseriu o inciso VI para incluir no § 2º do art. 121 do Código Penal o feminicídio, entendido como a morte de mulher em razão da condição do sexo feminino (leia-se, violência de gênero quanto ao sexo). A incidência da qualificadora reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade. Com a novel Lei, o feminicídio passa a configurar a sexta forma qualificada do crime de homicídio. O § 2°-A foi acrescentado para esclarecer quando a morte da mulher deve ser considerada em razão da condição do sexo feminino: I – violência doméstica e familiar (art. 5º da Lei nº 11.340/06); II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher (neste caso tipo se torna aberto, pois compete ao julgador estabelecer, diante do caso concreto, se o homicídio teve como móvel a diminuição da condição feminina).
Defendemos em nosso Manual que a qualificadora do feminicídio é subjetiva, pois pressupõe motivação especial: o homicídio deve ser cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino; não é o homicídio contra a mulher que atrai a qualificadora, mas o homicídio cometido porque se trata de uma mulher. Matar mulher, na unidade doméstica e familiar ou em qualquer ambiente ou relação, sem menosprezo ou discriminação à condição de mulher é femicídio. Se a conduta do agente é movida pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, aí sim temos feminicídio. Mesmo no caso do inciso I do § 2º-A, o fato de a conceituação de violência doméstica e familiar ser um dado objetivo – extraído da lei – não afasta a subjetividade. Isso porque o § 2º-A é apenas explicativo; a qualificadora está verdadeiramente no inciso VI, que, ao estabelecer que o homicídio se qualifica quando cometido por razões da condição do sexo feminino, deixa evidente que isso ocorre pela motivação, não pelos meios de execução.
Mas, logo após a inserção da qualificadora, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal decidiu que sua natureza é objetiva, pois, do contrário, afastam-se outras circunstâncias que qualificam o homicídio pelo motivo (torpe ou fútil) e desprestigia-se o esforço legislativo para tornar mais grave a pena do homicídio praticado contra a mulher em razão de sua condição:
“A inclusão da qualificadora agora prevista no art. 121, § 2º, inciso VI, do CP, não poderá servir apenas como substitutivo das qualificadoras de motivo torpe ou fútil, que são de natureza subjetiva, sob pena de menosprezar o esforço do legislador. A Lei 13.104/2015 veio a lume na esteira da doutrina inspiradora da Lei Maria da Penha, buscando conferir maior proteção à mulher brasileira, vítima de condições culturais atávicas que lhe impuseram a subserviência ao homem. Resgatar a dignidade perdida ao longo da história da dominação masculina foi a ratio essendi da nova lei, e o seu sentido teleológico estaria perdido se fosse simplesmente substituída a torpeza pelo feminicídio. Ambas as qualificadoras podem coexistir perfeitamente, porque é diversa a natureza de cada uma: a torpeza continua ligada umbilicalmente à motivação da ação homicida, e o feminicídio ocorrerá toda vez que, objetivamente, haja uma agressão à mulher proveniente de convivência doméstica familiar. 3 Recurso provido. (Acórdão n.904781, 20150310069727RSE, Relator: GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 29/10/2015, Publicado no DJE: 11/11/2015. Pág.: 105).
Ao que parece, o STJ tende a aderir à mesma tese. No julgamento do HC 430.222/MG (j. em 15/03/2018), o tribunal negou a ordem sob – dentre outros – o argumento de que as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio não são incompatíveis porque não têm a mesma natureza: enquanto a primeira é subjetiva, esta última é dotada de índole objetiva:
“Sobre o assunto, Guilherme de Souza Nucci, ao tratar do feminicídio esclarece que se trata de ‘uma qualificadora objetiva, pois se liga ao gênero da vítima: ser mulher”, advertindo que “o agente não mata a mulher somente porque ela é mulher, mas o faz por ódio, raiva, ciúme, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim, por motivos variados que podem ser torpes ou fúteis; podem, inclusive, ser moralmente relevantes’, não se descartando, ‘por óbvio, a possibilidade de o homem matar a mulher por questões de misoginia ou violência doméstica; mesmo assim, a violência doméstica e a misoginia proporcionam aos homens o prazer de espancar e matar a mulher, porque esta é fisicamente mais fraca’, tratando-se de ‘violência de gênero, o que nos parece objetivo, e não subjetivo’ (Curso de Direito Penal. Parte Especial. Volume 2. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 46/47).
Na mesma esteira tem se orientado a jurisprudência deste Sodalício, extraindo-se do REsp 1.707.113/MG, de Relatoria do Ministro Felix Fischer, publicado no dia 7.12.2017, que, “considerando as circunstâncias subjetivas e objetivas, temos a possibilidade de coexistência entre as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio. Isso porque a natureza do motivo torpe é subjetiva, porquanto de caráter pessoal, enquanto o feminicídio possui natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita, assim o animus do agente não é objeto de análise”.
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