A receptação, o descaminho e o contrabando representam certamente parte muito significativa das infrações penais cometidas atualmente no Brasil. São, com efeito, alarmantes os números relativos a veículos e suas peças, eletrônicos e outros produtos furtados e roubados que acabam sendo receptados e vendidos em estabelecimentos comerciais regulares e irregulares. Em 2017http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Mapas.aspx, somente no Estado de São Paulo foram registrados 104.829 furtos e 67.964 roubos de veículos, além de 10.584 roubos de carga. É evidente que a receptação facilitada é a grande causa dos altos índices de furto e roubo, pois a maioria dos produtos é subtraída com destinação certa: o mercado paralelo ilegal. São também impressionantes os números relacionados ao contrabando e ao descaminho. Estima-sehttps://www.etco.org.br/noticias/mercado-ilegal-e-ilegal-e-um-dos-principais-riscos-globais-de-2018/ que, em conjunto, entre 2015 e 2017 ambos causaram prejuízos em torno de 345 bilhões de reais.
Em razão disso, diversas medidas têm sido adotadas para inibir a prática de tais crimes. Descaminho e contrabando são combatidos sobretudo com a fiscalização do trânsito nas fronteiras brasileiras, especialmente com o Paraguai e com a Bolívia. O combate à receptação pode envolver medidas que impliquem maior formalidade e fiscalização mais intensa em estabelecimentos comerciais, como se verifica no Estado de São Paulo, que, por meio da Lei 15.276/14, obriga as empresas do ramo de desmontagem de veículos e de comercialização das respectivas partes e peças a solicitar credenciamento junto ao DETRAN – o que pressupõe, dentre outros requisitos, a apresentação de atestado de antecedentes criminais e certidão de distribuições criminais dos sócios-proprietários –, a comunicar ao DETRAN a entrada de veículo em seu estabelecimento para fins de desmontagem e a implementar sistema de controle que permita o rastreamento de todas as etapas do processo de desmontagem, desde a origem das partes e peças, incluindo a movimentação do estoque, até a sua saída. Estas providências facilitam a fiscalização, que pode facilmente detectar se o comércio é irregular.
Mas, dada a gravidade da situação, providências devem ser adotadas em outras frentes. A Lei 13.804/19 surge para somar esforços ao estabelecer punição administrativa a quem for flagrado cometendo receptação, descaminho ou contrabando por meio de veículo automotor. A lei insere no Código de Trânsito Brasileiro o art. 278-A, cujo caput dispõe:
“O condutor que se utilize de veículo para a prática do crime de receptação, descaminho, contrabando, previstos nos arts. 180, 334 e 334-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), condenado por um desses crimes em decisão judicial transitada em julgado, terá cassado seu documento de habilitação ou será proibido de obter a habilitação para dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos.”
Busca-se atingir de forma mais severa o motorista que se dedica a transportar para o Brasil produtos proibidos ou sobre os quais não há o recolhimento dos tributos devidos, bem como aquele que se presta a transportar de um lugar a outro mercadorias furtadas e roubadas.
Controvérsia que, acreditamos, pode surgir, diz respeito à aplicação da penalidade a motoristas profissionais, que, tendo a habilitação cassada, não podem mais exercer a profissão que lhes proporciona o sustento.
A nosso ver, é inquestionável a possibilidade de aplicar a cassação, a exemplo, aliás, do que já ocorre com a suspensão da habilitação para motoristas profissionais envolvidos em crimes culposos de trânsito. Há quem sustente que a pena de suspensão não pode ser aplicada contra o motorista profissional, mas o STJ se orienta em sentido diverso:
“O fato de o agravante ser motorista profissional não impede a aplicação da pena acessória de suspensão da habilitação, pois é justamente tal categoria que deveria agir com maior prudência no trânsito. 5. De acordo com a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, os motoristas profissionais – mais do que qualquer outra categoria de pessoas – revelam maior reprovabilidade ao praticarem delito de trânsito, merecendo, pois, a reprimenda de suspensão do direito de dirigir, expressamente prevista no art. 302 do CTB, de aplicação cumulativa com a pena privativa de liberdade. Dada a especialização, deles é de se esperar maior acuidade no trânsito” (AgRg no REsp 1.744.154/CE, j. 23/10/2018).
Ora, se a suspensão da habilitação é possível até mesmo em crimes de resultado involuntário, com muito mais razão deve ser admitida a cassação nas situações em que o motorista faz de sua profissão um meio para a prática de delitos.
No mais, o § 2º do art. 278-A admite uma espécie de suspensão cautelar da habilitação do motorista preso em flagrante pelo cometimento de um dos citados delitos. Em caso de necessidade de garantir a ordem pública, a medida pode ser decretada em qualquer fase da investigação ou da ação penal, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. Inibe-se, com isto, a situação recorrente do motorista que, preso em flagrante, logo é solto e volta a conduzir veículos com o mesmo propósito. Embora possa parecer de pouca utilidade à primeira vista, a medida pode dificultar a ação de organizações criminosas que buscam conferir aparência de legalidade ao transporte, o que pressupõe motoristas aptos e sobre os quais não recaia suspeita imediata.
Finalmente, transcorrido o prazo de cinco anos, o condenado poderá requerer sua reabilitação, desde que se submeta a todo o procedimento estabelecido no Código de Trânsito para a habilitação de motoristas.
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