A denunciação caluniosa é há muito tipificada no art. 339 do Código Penal como a conduta consistente em dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.
Trata-se de um crime contra a administração da Justiça, impulsionada inútil e criminosamente; em segundo lugar, protege-se a honra da pessoa inocente a quem se imputa o ilícito penal.
A Lei 13.834/19 inseriu no Código Eleitoral um tipo muito semelhante, que se diferencia sobretudo pelo propósito sob o qual atua o agente: a finalidade eleitoral. O tipo está no art. 326-A e consiste no seguinte:
“Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral”
E, assim, como no art. 339 do CP, há dois parágrafos. O primeiro contém causa de aumento de pena para as situações em que o agente se serve do anonimato ou de nome suposto; o segundo diminui a pena se a imputação é de prática de contravenção.
A pena abstratamente cominada é idêntica à do Código Penal: reclusão de dois a oito anos, além da multa.
Vejamos a seguir a síntese dos elementos relativos à nova tipificação.
(A) Sujeitos do delito
O crime é comum, isto é, pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive por advogado e pelas autoridades titulares dos procedimentos elencados no tipo. Por exemplo, o promotor de Justiça eleitoral que denunciar alguém para fins eleitorais o sabendo inocente pratica o delito.
Ao tratar do art. 339 do CP, a doutrina, de forma quase unânime, alerta que nas hipóteses em que o delito falsamente imputado ao inocente depender de queixa ou representação da “vítima” somente esta (ou seu representante legal) poderá praticar o crime. Assim, por exemplo, uma denunciação caluniosa versando sobre ameaça só pode ser praticada pela falsa “vítima” (ou seu representante), titular do direito de representação, condição para o início das investigações e da ação penal. Esta limitação não incide no tipo do art. 326-A, porque todos os crimes eleitorais são de ação penal pública incondicionada (art. 355).
Sujeito passivo é o Estado, atingido na fiel administração da Justiça Eleitoral. Figura, ainda, como vítima secundária, a pessoa inocente denunciada.
(B) Conduta
O novo tipo penal pune a conduta daquele que dá causa (provoca), direta ou indiretamente (por interposta pessoa) a instauração de procedimento oficial, imputando a determinada pessoa, sabidamente inocente, a prática de crime ou ato infracional.
Há uma nota distintiva, neste ponto, no tipo da denunciação caluniosa eleitoral: a menção expressa ao ato infracionalSegundo a definição do art. 103 da Lei 8.069/90, ato infracional é “a conduta descrita como crime ou contravenção penal”., inexistente na redação do art. 339 do CP. Assim, se no crime tipificado no Código Penal pode haver discussão sobre a possibilidade de que alguém cometa a denunciação caluniosa imputando falsamente um crime a alguém menor de dezoito anos (que, a rigor, não pode ter contra si um crime imputado), na denunciação caluniosa eleitoral a dúvida é absolutamente afastada.
Pode-se ainda imputar falsamente uma contravenção penal, caso em que a pena é diminuída (§ 2º).
Trata-se de infração de execução livre (não há formas preestabelecidas por lei), cuja ação nuclear consiste em dar causa, não importando se pela palavra escrita ou oral – já que a delactio criminis pode ser ofertada oralmente ou por escrito –, desde que seja falsa. São abrangidos pelo tipo os seguintes procedimentos:
→ Investigação policial: o tipo começa punindo aquele que, mediante notícia mentirosa, dá causa à instauração de investigação policial. A simples leitura do tipo incriminador nos conduz à conclusão de que se dispensa a instauração de inquérito policial para que o crime se caracterize. Basta que a falsa imputação acarrete investigação policial simples e informal (movimentação da autoridade no sentido de apurar os fatos). A propósito:
“Para a configuração do crime previsto no artigo 339 do Código Penal, é necessário que a denúncia falsa dê ensejo à deflagração de uma investigação administrativa, sendo prescindível, contudo, que haja a formalização de inquérito policial ou de termo circunstanciado.” (STJ: HC 433.651/SC, DJe 20/03/2018).
→ Processo judicial: em seguida, pune-se o agente que, imbuído de má-fé, dá causa à instauração de processo judicial. Adverte a doutrina que somente será objeto do delito em questão o processo penal, considerando-se instaurado no momento do recebimento da inicial;
→ Investigação administrativa: o denunciante imputa a outrem fato que, além de infração administrativa, constitui ilícito penal e dá ensejo a investigação na esfera apropriada;
→ Inquérito civil: trata-se do procedimento investigatório disposto na Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) que serve ao Ministério Público (titular exclusivo) para apurar lesão ou perigo de lesão a interesses difusos e coletivos indisponíveis. Da mesma forma que na alínea anterior, o denunciante deve imputar ao inocente, juntamente com a violação de qualquer norma, fato penalmente tipificado;
→ Ação de improbidade administrativa: aqui, como nas duas hipóteses precedentes, o fato injustamente imputado ao terceiro deve estar definido também como ilícito penal. Ressalte-se que nem todos os atos de improbidade administrativa são tipificados criminalmente. Se na denunciação por falso ato de improbidade não houver crime, o agente incorrerá somente nas penas previstas no art. 19 da Lei 8.429/92 (“constitui crime a representação por ato de improbidade contra agente público ou terceiro beneficiário quando o autor da denúncia o sabe inocente”).
E se o agente imputar falsamente um ilícito penal já atingido pela extinção da punibilidade? Há ainda assim denunciação caluniosa?
A circunstância extintiva da punibilidade impede, sem dúvida, a investigação criminal ou o processo penal, mas não inibe, por si só, a instauração dos demais procedimentos oficiais (administrativos) referidos no tipo, isto é, a investigação administrativa, o inquérito civil ou a ação de improbidade. Dentro desse espírito, a injusta imputação de um crime já prescrito a alguém que se sabe inocente pode, ainda assim, ensejar a instauração de procedimento investigatório extrapenal, configurando o delito de denunciação caluniosa.
(C) Voluntariedade
O dolo se consubstancia na vontade consciente de o agente dar causa à instauração de um dos procedimentos oficiais elencados no caput, imputando a outrem um ilícito penal, sabendo ser ele inocente. Entende-se, ante o texto da lei, que o dolo será apenas o direto, não se admitindo dolo eventual, pois o tipo exige a ciência da inocência da vítima:
“Consoante a jurisprudência desta Corte Superior, para caracterização do crime de denunciação caluniosa é imprescindível que o sujeito ativo saiba que a imputação do crime é objetivamente falsa ou que tenha certeza de que a vítima é inocente.” (STJ: RHC 106.998/MA, j. 21/02/2019)
Não obstante, parece-nos perfeitamente possível o dolo eventual, especialmente no caso de o agente imputar a determinada pessoa, que sabe inocente, a prática de um crime narrando para um terceiro a notícia mentirosa e assumindo o risco de que o ouvinte a transmita à autoridade policial, culminando na instauração de inquérito policial. Está claro que a expressão “saber inocente” liga-se à consciência do agente, podendo a vontade de realizar o crime ser direta (dolo direto) ou indireta (dolo eventual).
Não se admite, evidentemente, o dolo superveniente. Assim, aquele que, de boa-fé, no estrito exercício do direito constitucional de petição (art. 5º, XXXIV, a, da CF), noticia um crime que pensa praticado pela pessoa indicada, não pratica denunciação caluniosa, ainda que tempos depois descubra que sua iniciativa foi equivocada.
Por fim, no art. 326-A do Código Eleitoral se acrescenta um elemento especial: a finalidade eleitoral, que normalmente se identifica em ataques contra a honra e a imagem pública de adversários políticos, especialmente em períodos que antecedem imediatamente as eleições.
(D) Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a iniciação das diligências investigativas ou dos demais procedimentos elencados no caput.
Na denunciação caluniosa do Código Penal há certa controvérsia de que não está imune o novo tipo penal. Há quem sustente que para o Ministério Público propor a ação penal contra o autor da denunciação é necessário aguardar a conclusão do procedimento a que o agente injustamente deu causa, pois, do contrário, há o risco de conflito entre decisões (Hungria e Bento de Faria). Mirabete (Manual de direito penal, v. 3, p. 395), seguindo as lições de Fragoso, com razão, discorda e logo explica:
“Não é pressuposto da instauração de ação penal o arquivamento de inquérito policial aberto a pedido do indigitado autor do crime de denunciação caluniosa para só então valer aquele como peça de informação à persecutio criminis do Estado. Assim tem-se decidido, inclusive no STF (RT 568/373, 536/283, 390/69). Isso porque a prova da inocência da pessoa que foi acusada falsamente pode ser qualquer uma”. A respeito, já decidiu o STJ:
“A alegação de que seria indispensável o arquivamento formal do inquérito policial indevidamente instaurado, para só depois se processar o crime de denunciação caluniosa, não merece prosperar, quando evidenciado que foi no próprio inquérito policial instaurado para apurar o crime de abuso de autoridade, indevidamente imputado à vítima, que se verificou tratar-se de atribuição falsa de crime a pessoa sabidamente inocente.” (RHC 50.672/SP, j. 18/09/2014)
A tentativa é admitida nos casos em que, apesar da imputação, a autoridade policial não inicia procedimento investigatório, ou ainda nos casos em que os demais procedimentos não são iniciados por circunstâncias alheias à vontade do agente.
(E) Majorante e minorante de pena
O § 1º do art. 326-A aumenta a pena de sexta parte “se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto”. Como bem explica Hungria(Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro, v. 9, p. 469) ao comentar o art. 339 do CP:
“O indivíduo que se resguarda sob o anonimato ou nome suposto é mais perverso do que aquele que age sem dissimulação. Ele sabe que a autoridade pública não pode deixar de investigar qualquer possível pista (salvo quando evidentemente inverossímil), ainda quando indicada por uma carta anônima ou assinada com pseudônimo; e por isso mesmo, trata de esconder-se na sombra para dar o bote viperino. Assim, quando descoberto, deve estar sujeito a um plus de pena.”
O § 2º prevê causa de diminuição de pena pela metade se o agente imputa ao denunciado a prática de contravenção.
(F) Competência
Antes da inserção do 326-A no Código Eleitoral, quem cometesse denunciação caluniosa no contexto eleitoral respondia penalmente como incurso no art. 339 do CP, cuja competência era da Justiça Federal, pois, afetada a administração da Justiça Eleitoral, considerava-se prejudicado um interesse da União (art. 109, inc. IV, da Constituição Federal). Agora, com a nova tipificação específica, a competência passa a ser da Justiça Eleitoral.
(G) Veto presidencial
O projeto de lei aprovado contemplava um terceiro parágrafo com uma forma equiparada do delito. Segundo o dispositivo, incorreria nas mesmas penas do caput o indivíduo que, ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulgasse ou propalasse, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe havia sido falsamente atribuído.
Ocorre que o art. 324, § 1º, do Código Eleitoral pune conduta semelhante (propalar ou divulgar a calúnia eleitoral) com pena muito menor (detenção de seis meses a dois anos), o que tornaria desproporcional a pena do novo tipo equiparado:
“A propositura legislativa ao acrescer o art. 326-A, caput, ao Código Eleitoral, tipifica como crime a conduta de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral. Ocorre que o crime previsto no § 3º do referido art. 326-A da propositura, de propalação ou divulgação do crime ou ato infracional objeto de denunciação caluniosa eleitoral, estabelece pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa, em patamar muito superior à pena de conduta semelhante já tipificada no § 1º do art. 324 do Código Eleitoral, que é de propalar ou divulgar calúnia eleitoral, cuja pena prevista é de detenção, de seis meses a dois anos, e multa. Logo, o supracitado § 3º viola o princípio da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada.”
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