Noticiou-se no dia 27 de agosto que a 2ª Turma do STF, por maioria, vencido o Relator (Ministro Edson Fachin), decidiu anular a ação penal em que Aldemir Bendine foi condenado a 7 anos, 9 meses e 10 dias pelo crime de corrupção no bojo da denominada Operação Lavajato. A decisão foi tomada no Agravo no Habeas Corpus n. 157.627 (acórdão ainda não disponível).
A tese preponderante foi de que, “no processo, Moro deu o mesmo prazo para o ex-presidente da Petrobras e seus delatores da Odebrecht apresentarem alegações finais, a última manifestação no processo. Para garantir a ampla defesa, Bendine deveria ser o último a se manifestar” (palavras do Ministro Gilmar Mendes). Assentou ainda que “a abertura de alegações finais do colaborador deve ocorrer em momento anterior aos delatados” e que “a abertura para alegações finais deve se dar de modo sucessivo ao meu ver. Reconheço que é tema difícil porque a questão se coloca a partir dessa ‘via crucis’ nova, por conta do uso do instituto da colaboração premiada e desse aprendizado institucional que estamos a desenvolver”.
Respeitosamente, o equívoco foi grande, contrastando com precedentes do STF, especialmente da lavra dos próprios Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia.
Vejamos, por partes, de maneira bem objetiva.
Em primeiro lugar, não existe qualquer previsão legal expressa no sentido de que colaboradores-réus devam falar antes dos demais réus envolvidos na ação penal. Quem sempre fala primeiro é a acusação. No caso, todos os réus falaram por último. O que pretendia o impetrante é que ele falasse depois de outro réu que foi colaborador.
O que o Código de Processo Penal determina é que, nos termos dos arts. 403 e 404, sejam abertos prazos sucessivos para as partes (primeiro acusação, depois defesa). Mas não refere que se, dentre um dos réus, houver colaborador, tenha que ele falar antes que os demais envolvidos e que foram referidos pelo colaborador.
Não se pode desbordar ainda do que expressamente decidiu a 1ª Turma do STF muito recentemente, ao reconhecer que “inexiste previsão legal de nulidade decorrente da mera inversão na ordem das alegações finais, sendo certo que as nulidades processuais são numerus clausus e, à luz do princípio da instrumentalidade das formas, rege-se pelo princípio pas de nullité sans grief” (Ação Penal n. 968 – SP, STF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 22.5.2018, publicado no DJ em 2.8.2019).
Em segundo lugar, é entendimento expresso (abaixo) de todos os ministros que adotaram essa tese de “nulidade” que a palavra de colaborador não pode, por si só, condenar o réu “delatado”. Dizem e defendem expressamente que sem provas materiais corroboradoras, a palavra de colaborador (mesmo que reafirmada por outros colaboradores) não pode ser utilizada como elemento condenatório.
Na apreciação da denúncia formulada no bojo do Inquérito n. 4.005 (julgado em 11.12.2018, DJ de 21.5.2019), o Ministro Gilmar Mendes (redator do acórdão) reconheceu que “no caso, além da palavra dos colaboradores, não há indícios suficientes contra o Senador denunciado. A falta de indícios mínimos que justifiquem o recebimento da denúncia deve ensejar a sua rejeição, nos termos do art. 6º da Lei n° 8.038/90 e art. 395 do CPP“.
Na mesma linha (e nessa parte foi coerente com seu voto no caso concreto, disse o Ministro Edson Fachin (acolhido pelo Plenário no unânime julgamento do HC 127.483-PR – leading case), “as declarações do colaborador, portanto, só têm validade se forem corroboradas por outros elementos de prova, o que significa dizer que, sozinhas, suas palavras, em face do delatado, nenhum efeito jurídico produzem“.
A Ministra Cármen Lúcia (HC 127.483-PR) reconheceu que “o acordo de colaboração premiada apresenta-se como meio de obtenção de prova, porém os depoimentos nele contidos caracterizam -se como meio de prova ou, ao menos, indício probatório“. Assim, complementou citando doutrina, “o legislador acabou seguindo a tendência doutrinária e jurisprudencial bem delineada por Renato Brasileiro, quando diz que se tem ‘firmado a jurisprudência no sentido de que, isoladamente, a chamada de corréu não respalda uma condenação, devendo estar corroborada por outros elementos probatórios’. Em outras palavras, não basta uma colaboração premiada isolada, mas sim, cumulada com outros elementos de provas a afastar o princípio da presunção de inocência do delatado”. Inclusive divergiu do relator não reconhecendo a possibilidade de que “vários acordos de colaboração premiada são, por si sós, insuficientes a ensejar condenação criminal”.
De fato, dispõe o art. 4º, § 7º, da Lei n. 12.850/13, que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. Ora, se a palavra do colaborador não é prova autônoma, onde está a possibilidade de prejuízo para o réu ?
Veja-se que a premissa tomada por maioria foi no sentido exclusivamente genérico de que a defesa deverá falar após as alegações do colaborador. Não fez análise fática nenhuma do caso concreto, qual prejuízo efetivo e concreto que teria daí decorrido. Foi em tese !
A propósito do tema de nulidades no processo penal, vejamos o que defendem em outros casos os mesmos julgadores.
No julgamento do HC n. 95.654 (DJ de 15.10.2010), o Ministro Gilmar Mendes enfatizou claramente que “cumpre observar que o prejuízo constitui viga- mestra do sistema de nulidades, sendo decorrência da ideia geral de que as formas processuais representam tão somente um instrumento para a correta aplicação do Direito. Nesse diapasão, a desobediência às formalidades estabelecidas pelo leegislador só deve conduzir ao reconhecimento da invalidade do ato quando a sua própria finalidade estiver comprometida por causa do vício. […] Não basta, para a nulidade perseguida, a mera conjectura da existência de prejuízo. […] A doutrina tem sido uníssona em relação ao princípio do prejuízo, enfatizando a disposição contida no art. 563 do CPP: “Nenhum ato processual será declarado nulo, se da nullidade não tiver resultdo prejuízo para uma das partes”.
No julgamento do HC n. 94.817 (em que a parte pretendia a nulidade do processo pela deficiência técnica da defesa), novamente o Ministro Gilmar Mendes indeferiu o pleito argumentando que “as nulidades não devem ser decretadas por apego excessivo à lei ou ao procedimento e, mesmo no caso de nulidades absolutas, deve-se observar o princípio do interesse, agregado ao prejuízo efetivo ou potencial para a parte no processo”.
Noutro caso (bem recente, aliás), entendeu o Ministro Ricardo Lewandowski que a “orientação desta Suprema Corte é a de que, para o reconhecimento de eventual nulidade, ainda que absoluta, faz-se necessária a demonstração do efetivo prejuízo“(Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 1.169.982 – PR, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 16.5.2019, publicado no DJ em 23.5.2019). E reafirmou que “no processo penal, a declaração de nulidade não prescinde da ocorrência de concreto e efetivo prejuízo à defesa” (RHC n. 116.108-RJ, 2ª Turma, unânime, julgado em 16.10.2013, publicado no DJ em 17.10.2013).
Esse seu entendimento é corroborado no julgamento de outro feito, referindo que “o entendimento desta Suprema Corte é o de que, para o reconhecimento de eventual nulidade, ainda que absoluta, faz-se necessária a demonstração do prejuízo. Nesse sentido, o Tribunal tem reafirmado que a demonstração de prejuízo, “a teor do art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta, eis que […] o âmbito normativo do dogma fundamental da disciplina das nulidades pas de nullite sans grief compreende as nulidades absolutas” (HC 85.155/SP, Rel. Min. Ellen Gracie)” . E complementou: “o pedido deve expor, claramente, como o novo ato beneficiaria o réu. Sem isso, estar- se-ia diante de um exercício de formalismo exagerado, que certamente comprometeria o objetivo maior da atividade jurisdicional (v.g: HC 85155, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, DJ 15-04-2005; RHC 117096, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 15-10-2013; RHC 117674, Relator(a): Min. CARMEN LUCIA, Segunda Turma, DJe de 07-10- 2013; HC 115336, Relator(a): Min. CARMEN LUCIA, Segunda Turma, DJe de 05- 06-2013)” (HC 109.708/SP, Rel. Min. Teori Zavascki)”. (AgR em RHC n. 133.298, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 23.8.2018, publicado no DJ em 3.9.2018).
Por sua vez, reportando-se ao entendimento do Ministro Dias Tóffoli, a Ministra Cármen Lúcia assentou (HC n. 117.674, DJ 7.10.2013) que “não se declara nulidade por mera presunção” (RHC 99.779, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe 13.9.2011). E há muito reconhece que “o princípio do pas de nullité sans grief exige, sempre que possível, a demonstração de prejuízo concreto pela parte que suscita o vício. Precedentes. Prejuízo não demonstrado pela defesa”(Habeas corpus nº 103.525, 1ª Turma, unânime, julgado em 3.8.2010, publicado no DJ em 27.8.2010).
Por fim: o réu envolvido teve oportunidade, da forma mais ampla possível, de discutir e rebater as teses acusatórias e as palavras do colaborador no julgamento da apelação por ele interposta. Noutras palavras: exerceu, plenamente, o contraditório e a ampla defesa. Não há indicação, objetiva, expressa e clara, de qual prejuízo efetivamente ocorrido e “de que modo a renovação dos referidos atos processuais poderia beneficiar o paciente, limitando-se a tecer considerações genéricas sobre o princípio do devido processo legal” (Habeas Corpus n. 120.759-SE, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 28.10.2014, publicado no DJ em 13.11.2014 – julgamento do qual participaram os Ministros Cármen Lúcia e Gilmar Mendes).
Esperamos que a coerência seja restabelecida, para o verdadeiro e efetivo devido processo legal.