Em 07 de novembro de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) de números 43, 44 e 54, decidindo, por 6 votos a 5, pela constitucionalidade do artigo 283, caput, do Código de Processo Penal (“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”) e pela inconstitucionalidade da execução provisória da pena privativa de liberdade em face da violação ao disposto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), que consagra o princípio da presunção de inocência.
Nesse breve texto, gostaria de tecer alguns breves comentários a respeito das implicações penais e processais penais relevantes desta decisão paradigmática.
Seguem as considerações abaixo:
I) REAL CONTEÚDO DA DECISÃO DO STF: Em verdade, não havia polêmica acerca da constitucionalidade do teor do artigo 283, caput, do Código de Processo Penal (CPP). Ele apenas e tão somente prevê as espécies de prisões já existentes no país, quais sejam: a) prisão penal/pena, que é a pena privativa de liberdade aplicada após a decisão penal condenatória transitada em julgado, decorrente, portanto, de ordem judicial escrita e fundamentada; ela é aplicável, pois, ao culpado, ensejando a sua execução definitiva; b) e a prisão cautelar/processual/provisória, que contempla as prisões em flagrante, temporária e preventiva; ela é aplicável ao inocente, não permitindo execução nem definitiva, nem provisória. O que as ADCs pretendiam era que o STF naturalmente declarasse a constitucionalidade deste dispositivo legal e afirmasse que ele era delimitativo, taxativo: considerando que nele não se prevê a execução provisória da pena privativa de liberdade e sendo tal dispositivo constitucional, a mencionada execução restaria vedada pelo ordenamento jurídico, sendo então inconstitucional. Desse modo, com a decisão de procedência destas ADCs, o STF, em essência, reconhece que a execução provisória da pena privativa de liberdade não está prevista no art. 283 do CPP, que é constitucional, daí porque ela ofende a presunção de inocência insculpida no art. 5º, inciso LVII, da Carta Magna Federal. Importante frisar que a decisão em comento foi proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, razão pela qual seus efeitos são vinculantes e erga omnes, encerrando, portanto, ao menos por ora, a discussão deste tema. Ademais, ela beneficia, desde já, pessoas que estavam presas em virtude de acórdão criminal condenatório proferido por juízo de segundo grau, que, no entanto, podem continuar presas se for decretada judicialmente em seu lugar a prisão preventiva ante a existência de motivo cautelar definido no art. 312 do CPP. De outro lado, ela não beneficia réus presos já em virtude do decreto judicial de prisão preventiva, a exemplo do que se verificou com o ex-Deputado Federal Eduardo Cunha e o ex-Governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral.
II) REPERCUSSÕES PARA O FUTURO: A partir da decisão em análise, algumas repercussões para o futuro são, desde já, vislumbradas, notadamente as que são discutidas a seguir:
1. Execução provisória da pena restritiva de direitos: à época em que o STF entendia que era constitucional a execução provisória da pena privativa de liberdade, o STJ (Informativo nº 609) e o próprio STF (HC 144.908/RS) proferiram decisões apontando a inconstitucionalidade da execução provisória da pena restritiva de direitos em face do teor do art. 147 da Lei de Execução Penal (“Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares.”). Ocorre que, ainda nesta época, o Ministro Luiz Edson Fachin, em decisão monocrática, autorizou a execução provisória de pena restritiva de direitos (STF, RE 1161548, Rel. Min. Luiz Edson Fachin). Instalou-se, portanto, o debate a esse respeito. Posteriormente, o Ministro Gilmar Mendes, também em decisão democrática, decidiu pela inconstitucionalidade desta execução (STF, HC 161140). A 2ª Turma do tribunal chegou a iniciar a discussão acerca da matéria, que não foi, todavia, finalizada. No julgamento das ADCs 43, 44 e 54, o STF não chegou a tratar desta execução, mas a tendência é que o tribunal mantenha uma coerência sistemática e passe a proferir decisões no sentido da inconstitucionalidade da execução provisória da pena restritiva de direitos.
2. Execução provisória da pena privativa de liberdade aplicada em decisão penal condenatória proferida pelo Tribunal do Júri: também à época em que o STF entendia que era constitucional a execução provisória da pena privativa de liberdade, a 1ª Turma deste tribunal (STF, HC 140.449, 1ª Turma) decidiu que as condenações à pena privativa de liberdade proferidas em primeiro grau pelo Tribunal do Júri poderiam ser executadas desde já, em respeito ao princípio constitucional da soberania dos veredictos, tendo em vista que, na hipótese de eventual recurso de apelação interposto contra decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos, o órgão ad quem não poderia reformar esta decisão, apenas anulá-la, submetendo o réu a um novo julgamento, com 7 (sete) novos jurados (art. 593, III, “d”, e § 3º, CPP). Contudo, posteriormente, o Ministro do STF Celso de Mello (STF, HC 174.759), e o Ministro do STJ Jorge Mussi (STJ, HC 540.578), ambos em decisões monocráticas, decidiram pelo não cabimento da execução provisória nesta hipótese. Instalou-se, portanto, mais um debate. No julgamento das ADCs 43, 44 e 54, o STF não apreciou o tema, muito embora o Ministro Dias Toffoli tenha alertado para a necessidade de decisão a esse respeito. A matéria será pautada em breve para uma definição sobre a constitucionalidade ou não desta execução.
3. Propostas de Emenda à Constituição (PECs) números 410/2018 (Câmara dos Deputados) e 05/2019 (Senado): Já estão em andamento no Congresso Nacional as PECs de números 410/2018 (Câmara dos Deputados) e 05/2019 (Senado). A primeira pretende alterar o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que passaria a ter a seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”. Já a segunda tem como objetivo incluir o inciso XVI ao art. 93 do Texto Constitucional, permitindo a execução provisória da pena após a condenação por órgão colegiado. Alguns questionamentos devem ser feitos a respeito destas PECs, muitos deles sem resposta pronta e definitiva, exigindo, pois, uma profunda reflexão por parte da comunidade jurídica nacional.
3.1. É possível que PEC trate desta matéria? A discussão maior gira em torno da PEC 410/2018, tendo em vista que ela alteraria o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, tido como cláusula pétrea, insuscetível, pois, de reforma pelo legislador constituinte derivado, necessitando de uma nova Assembleia Constituinte para este fim, de acordo com o previsto no art. 60, § 4º, inciso IV, do próprio Texto Constitucional. Todavia, impende registrar que há parcela da doutrina, a exemplo do Ministro Gilmar Mendes, em sua obra “Curso de Direito Constitucional”, sustentando que é possível que uma Emenda Constitucional atinja o rol do art. 5º da Constituição, desde que não haja qualquer prejuízo ao núcleo essencial do direito fundamental. Nesse sentido, não seria admitida uma reforma que suprimisse do ordenamento constitucional o princípio da presunção de inocência, mas seria possível a Emenda Constitucional definir a noção de culpa, delineando que ela seria formada a partir do trânsito em julgado da decisão acerca dos fatos/provas, não da matéria de direito, exatamente o que ocorreria com as decisões condenatórias proferidas por tribunal de segundo grau, considerando que o STJ e o STF, em recurso especial (Súmula 07 STJ) e em recurso extraordinário (Súmula 279 STF), não apreciam fatos/provas. Aliás, é essa a definição da culpa existente, por exemplo, no Pacto de São José da Costa Rica, que integra o ordenamento jurídico nacional a título de norma supralegal.
3.2. É possível uma nova norma rever decisão do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade? Há também divergência na comunidade jurídica sobre esse tema. Para alguns, não seria possível. Exemplo marcante desse primeiro entendimento se deu na discussão quanto à (in)constitucionalidade da vaquejada no país. O STF, no julgamento da ADI 4983/CE, decidiu que a lei estadual do Ceará que disciplinava esta prática seria inconstitucional, por violar o meio ambiente (art. 225 CF), causando maus-tratos e sofrimento a animais. Posteriormente, foi publicada a Emenda Constitucional nº 96/2017, que justamente permitiu a vaquejada como manifestação cultural (art. 225, § 7º, CF). Em seguida, a Procuradoria-Geral da República ajuizou a ADI 5728, apontando a inconstitucionalidade desta Emenda Constitucional, inclusive por violação ao julgado proferido pelo STF na ADI 4983/CE. Aquela ADI (5728) ainda não foi apreciada. Para outros, no entanto, seria possível a revisão. Exemplo deste segundo entendimento se deu com a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 35/2010): antes dela, o STF entendia que não seria possível prever causa de inelegibilidade eleitoral em virtude de decisão ainda não transitada em julgado, em respeito à presunção de inocência; depois dela, o mesmo STF decidiu, em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADCs 29 e 30 e ADI 4578) que seria possível prever inelegibilidade a partir de decisão proferida por órgão colegiado sem que isso implicasse em violação à presunção de inocência. Se alguma das PECs for aprovada, certamente o STF será provocado a decidir em um sentido ou em outro.
3.3. Em sendo possível uma norma contrariar decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade, haveria necessidade de PEC para tanto? Para aqueles que entendem que é possível que uma reforma legislativa contrarie decisão proferida pelo STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade, sequer haveria necessidade de uma PEC para tanto: seria suficiente uma lei ordinária alterando o art. 283, caput, do CPP para nele prever a execução provisória da pena privativa de liberdade. Até porque isso não significaria propriamente violação ao que foi decidido pelo STF, já que o tribunal asseverou que não seria admitida a execução provisória considerando que ela não estaria prevista no art. 283, caput, do CPP, norma delimitativa e, ao mesmo tempo, constitucional.
3.4. A Emenda Constitucional, se aprovada, poderia retroagir? Se alguma das PECs for aprovada, indubitavelmente haverá discussão se a nova Emenda Constitucional poderá ou não retroagir. Tudo vai depender do entendimento sobre a natureza jurídica dela, se seria norma processual penal pura ou norma processual penal mista ou híbrida. Em sendo norma processual penal pura (aquela que não envolve qualquer conteúdo de Direito Penal), nos termos do art. 2º do CPP, ela seria aplicada desde o momento em que entrasse em vigor no país, aplicando-se, portanto, a processos em andamento, inclusive aqueles que digam respeito a crimes praticados antes do advento da Emenda. Na prática, quem tivesse sido solto com a decisão do STF em comento poderia voltar a ficar preso com a aprovação da Emenda Constitucional. Se, noutro giro, a nova Emenda for considerada norma processual penal mista ou híbrida, por envolver, em essência, instituto ligado ao Direito Penal/direito material, no caso em tela o direito à liberdade, seria invocado o princípio da proibição da retroatividade da norma que é prejudicial ao réu. Ou seja, quem foi solto com a decisão do STF não poderia ser atingido pela nova Emenda Constitucional, a qual valeria apenas para situações posteriores a ela.