No crime preterdoloso, o agente pratica delito distinto do que havia projetado cometer, advindo da conduta dolosa resultado culposo mais grave do que o pretendido. O comportamento inicial é doloso, mas o resultado (mais grave) é involuntário. Cuida-se, portanto, de figura criminosa híbrida na qual há verdadeiro concurso de dolo e culpa no mesmo fato (dolo no antecedente – conduta – e culpa no consequente – resultado). Exemplo clássico de crime preterdoloso é a lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º, do CP). Com efeito, nesse crime o agente pretende cometer uma lesão, porém, por negligência, imprudência ou imperícia, dá causa a resultado mais grave, qual seja, a morte.
O crime preterdoloso é uma espécie de crime qualificado pelo resultado. Explica Nucci:
“Na realidade, o crime qualificado pelo resultado é gênero no qual há a espécie preterdolosa. Esta última é, particularmente, caracterizada por admitir somente dolo na conduta antecedente (fato-base) e culpa na conduta consequente (produtora do evento qualificador), além de exigir que o interesse jurídico protegido seja o mesmo, tanto na conduta antecedente, como na consequente – ou pelo menos do mesmo gênero. Tal situação pode ocorrer, com exatidão, na lesão corporal seguida de morte” (Código Penal Comentado. 13ª ed. São Paulo: RT, 2012, p. 229).
Conclui-se, portanto, que o crime preterdoloso é apenas uma espécie de crime agravado ou qualificado pelo resultado. As demais espécies são:
a) crime doloso agravado dolosamente: é o que ocorre no crime de roubo qualificado pelo resultado morte (art. 157, § 3º, inc. II, CP);
b) crime culposo agravado culposamente: é a hipótese do incêndio culposo agravado pela morte culposa de alguém (art. 250, § 2º c/c art. 258, 2ª parte, CP);
c) crime culposo agravado dolosamente: acontece no caso do homicídio culposo agravado pela omissão dolosa de socorro imediato à vítima (art. 121, § 4º, CP);
d) crime doloso agravado culposamente: somente essa espécie de crime agravado pelo resultado é denominada crime preterdoloso.
São, em resumo, elementos do crime preterdoloso:
a) conduta dolosa com o propósito de alcançar determinado resultado;
b) provocação de resultado culposo mais grave que o desejado;
c) nexo causal entre conduta e o resultado;
d) tipicidade, pois não se pune o crime preterdoloso sem previsão expressa em lei.
Consideradas essas características, no julgamento de agravo regimental no recurso especial 1.656.165/MG (j. 09/12/2020) o STJ determinou a competência do tribunal do júri para julgar médicos que, durante a extração ilegal de órgãos de um paciente, provocaram sua morte dolosamente.
Os médicos haviam sido denunciados como incursos no art. 14, § 4º, da Lei 9.434/97, que consiste no seguinte:
“Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei:
Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa.
[…]
§ 4.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte:
Pena – reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa”.
Segundo argumentava o Ministério Público, a morte qualificadora do crime de extração ilegal de órgãos pode decorrer tanto de dolo quanto de culpa. A tese foi aceita pela primeira instância, que condenou os médicos nos termos da imputação. Contudo, no julgamento da apelação, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais anulou de ofício a sentença condenatória em razão da incompetência absoluta do juiz singular, que não poderia ter apreciado o mérito da imputação de um homicídio doloso, cujo julgamento compete, por disposição constitucional, ao tribunal do júri.
Provocado pelo órgão acusador, o STJ refutou a tese de que o crime do art. 14 da Lei 9.434/97 pode ser qualificado por uma morte dolosa e, portanto, manteve a decisão da corte estadual.
No recurso especial, para sustentar a possibilidade de que a remoção ilegal de órgãos seja qualificada pela morte dolosa, o Ministério Público invocou o art. 129, § 3º, do CP e apontou que esse dispositivo, sim, é um exemplo claro de crime unicamente preterdoloso, pois o legislador ressalva expressamente: “[se] as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo”. Tendo em vista que o art. 14, § 4º, da Lei 9.434/97 não contém ressalva semelhante, a morte a que se refere pode ser decorrente de dolo ou culpa, ou seja, o crime pode ser qualificado pelo resultado mais grave proposital ou involuntário.
O STJ, com razão, rejeitou a tese argumentando que o Código Penal contém diversos dispositivos com redação semelhante ao art. 14, § 4º, da Lei 9.434/97 – isto é, sem a ressalva contida na lesão corporal seguida de morte –, nos quais a morte deve ser decorrência de culpa. Como exemplo, invocou o art. 133, § 2º, do CP, que tipifica o abandono de incapaz do qual resulta a morte (culposa). Acrescentamos o exemplo do crime de estupro, qualificado pela morte exclusivamente culposa, mas cujo tipo penal não faz menção ao fato de o agente não querer nem assumir o risco de provocar o resultado.
O tribunal recusou, ainda – e também com razão –, comparações com o crime de latrocínio e a possibilidade de aplicar a consunção do homicídio pela remoção ilegal de órgãos:
“Outro raciocínio por analogia efetuado nas instâncias inferiores foi em relação ao crime de latrocínio. Ao contrário do que disse o acórdão, este crime não é preterdoloso, cuidando-se de roubo agravado pelo resultado morte tanto culposo quanto doloso. Mas tal constatação não leva à conclusão desejada pelo recorrente, devendo ser utilizado o princípio da proporcionalidade das penas como um critério interpretativo dos tipos penais. O latrocínio admite dolo no consequente justamente porque o legislador, no preceito secundário da respectiva norma penal incriminadora, estabeleceu uma pena abstrata mais grave que a do homicídio. Para este, 6 a 20 anos (art. 121, caput, do CP), ou 12 a 30 anos (art. 121, § 2º, do CP); para aquele, que abrange o homicídio, mas vai além, sanção de 20 a 30 (art. 157, § 3º, II, do CP). A mesma ponderação não vale para o art. 14, § 4º, da Lei 9.434/97, porque a sanção que lhe foi cominada de 8 a 20 anos, é inferior à do homicídio qualificado, embora não se trate de conduta menos grave.
A utilização do princípio da consunção no conflito aparente de normas para justificar a absorção do crime mais grave (homicídio doloso) pelo delito menos grave (remoção ilegal de órgão qualificada pelo resultado morte) também não é cabível. Primeiro, matar a vítima não é meio “necessário” para remover quaisquer dos seus órgãos, tanto que, no caso, a morte não foi meio, mas consequência da extração; segundo, porque a morte da vítima não configura mero exaurimento de uma remoção anterior. Além do mais, a comparação com precedentes relativos a falsidade não se aplica ao caso, já que não se pode comparar a sua gravidade com a de crimes dolosos contra a vida. A propósito, aqui o recorrente inclusive entra em contradição, já que em outras passagens defende a aplicação do princípio da especialidade, não o da consunção. Embora tenha dito, no agravo, que na verdade se aplicam ambos, o que inclusive é questionável, está claro que o fez para tentar justificar o equívoco cometido”.
E concluiu:
“Assim, a despeito da doutrina contrária citada pelo Ministério Público, a hipótese do art. 14, § 4º, da Lei 9.434/97, versa sobre nítido caso de crime preterdoloso, no qual a remoção ilegal de órgão acontece dolosamente, mas o resultado morte é meramente culposo, não intencional e sem que tenha sido assumido o seu risco. Seria o caso de o médico, ilicitamente, retirar algum órgão sem o qual a pessoa possa continuar a sobreviver, mas, por imperícia, causar o óbito da vítima, presentes os demais requisitos da modalidade culposa.
Por isso, não se amoldando a conduta denunciada na descrição do art. 14, § 4º, da Lei 9.434/97, agiu corretamente o acórdão recorrido ao proceder à emendatio libelli, sem nenhuma ofensa ao art. 564, I, do CPP. Aliás, não custa lembrar que o crime de homicídio qualificado é sancionado em abstrato de forma mais grave que a remoção de órgãos qualificada pelo resultado morte culposo, não se podendo falar que a interpretação ora conferida à legislação federal abrande excessivamente o sistema penal. O problema é que, neste caso concreto o Ministério Público não recorreu, o que levou o acórdão recorrido a corretamente proibir a reformatio in pejus indireta”.
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Manual de Direito Penal (parte geral)
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