A possibilidade de execução da pena após a decisão do recurso em segunda instância foi inicialmente estabelecida pelo STF no julgamento do habeas corpus 126.292, em 17 de fevereiro de 2016. À época, o tribunal modificou orientação firmada em 2009, quando, ao julgar o habeas corpus 84.078, havia considerado impossível que se executasse a pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória e estabeleceu a possibilidade de encarceramento apenas se verificada a necessidade de que isso ocorresse por meio de cautelar (prisão preventiva).
A decisão proferida em 2016 provocou muita controvérsia e suscitou debates a respeito da constitucionalidade da execução da pena antes de percorrida toda a cadeia recursal. O argumento central dos que advogam a tese de que a pena não pode ser executada até que a sentença condenatória se torne definitiva se baseia no art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Tamanha foi a celeuma que, no mesmo ano, foram ajuizadas duas ações declaratórias de constitucionalidade (43 e 44), nas quais se pretendia a declaração de plena vigência e compatibilidade constitucional do art. 283 do CPP, que dispõe: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Pretendia-se, com isso, evitar os efeitos da decisão tomada no habeas corpus já citado, ou seja, que a prisão se tornasse possível após o julgamento de recursos em segunda instância.
À época, o pleno do STF indeferiu medida cautelar para que fossem suspensas execuções antecipadas em curso e para que fossem impedidas novas execuções enquanto não julgado o mérito das ações constitucionais. Considerou-se, basicamente, que a presunção de inocência tem sentido dinâmico, modificando-se conforme se avança a marcha processual. Dessa forma, se no início do processo a presunção pende efetivamente para a inocência, uma vez proferido julgamento em recurso de segunda instância essa presunção passa a ser de não culpa, pois, nessa altura, encerrou-se a análise de questões fáticas e probatórias. Portanto, uma vez que o tribunal (TJ/TRF) tenha considerado bem provados o fato e suas circunstâncias, os recursos constitucionais não abordarão esses aspectos, pois estarão adstritos aos limites que lhe são impostos constitucional e legalmente. O acórdão foi publicado nos seguintes termos:
“1. No julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, a composição plenária do Supremo Tribunal Federal retomou orientação antes predominante na Corte e assentou a tese segundo a qual “A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal”. 2. No âmbito criminal, a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial detém caráter excepcional (art. 995 e art. 1.029, § 5º, ambos do CPC c/c art. 3º e 637 do CPP), normativa compatível com a regra do art. 5º, LVII, da Constituição da República. Efetivamente, o acesso individual às instâncias extraordinárias visa a propiciar a esta Suprema Corte e ao Superior Tribunal de Justiça exercer seus papéis de estabilizadores, uniformizadores e pacificadores da interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional. 3. Inexiste antinomia entre a especial regra que confere eficácia imediata aos acórdãos somente atacáveis pela via dos recursos excepcionais e a disposição geral que exige o trânsito em julgado como pressuposto para a produção de efeitos da prisão decorrente de sentença condenatória a que alude o art. 283 do CPP. 4. O retorno à compreensão emanada anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de conferir efeito paralisante a absolutamente todas decisões colegiadas prolatadas em segundo grau de jurisdição, investindo os Tribunais Superiores em terceiro e quarto graus, revela-se inapropriado com as competências atribuídas constitucionalmente às Cortes de cúpula. 5. A irretroatividade figura como matéria atrelada à aplicação da lei penal no tempo, ato normativo idôneo a inovar a ordem jurídica, descabendo atribuir ultratividade a compreensões jurisprudenciais cujo objeto não tenha reflexo na compreensão da ilicitude das condutas. Na espécie, o debate cinge-se ao plano processual, sem reflexo, direto, na existência ou intensidade do direito de punir, mas, tão somente, no momento de punir. 6. Declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, com interpretação conforme à Constituição, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação assentada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível. 7. Medida cautelar indeferida”.
Em abril de 2018, nova ação declaratória de constitucionalidade (54) foi ajuizada com o mesmo propósito das anteriores. Em dezembro do mesmo ano, o ministro Marco Aurélio (relator) chegou a deferir liminar para suspender as execuções penais em curso, mas a decisão foi imediatamente suspensa pelo presidente da Corte.
Nas últimas sessões plenárias, o tribunal julgou o mérito das três ações e, contrariando a tendência que se desenhava desde 2016, decidiu que a pena só pode ser executada após esgotados todos os recursos, marco do trânsito em julgado.
Na qualidade de relator de todas as ações, o ministro Marco Aurélio foi o primeiro a votar para julgar procedentes os pedidos e, consequentemente, declarar a constitucionalidade do art. 283 do CPP, com a consequente proibição de que penas sejam executadas antes do julgamento dos recursos (trânsito em julgado da sentença condenatória). De acordo com o ministro, o art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, é claro e não deixa margem para dúvidas a respeito da necessidade da condenação definitiva.
Abrindo a divergência, o ministro Alexandre de Moraes votou pela possibilidade de que a pena seja executada após o julgamento dos recursos em segunda instância. O argumento é basicamente o mesmo que fundamentou o indeferimento da cautelar em 2016: observado o devido processo legal, a decisão condenatória em segunda instância afasta o princípio da presunção de inocência e abre o caminho para a execução da pena. Para o ministro Alexandre, é necessário dar efetividade às decisões das instâncias ordinárias, competentes para o exame dos fatos e das provas, decisões estas que, em caso de ilegalidade ou inconstitucionalidade, podem ser atacadas por meio de habeas corpus ou medida cautelar para que se aguarde o pronunciamento dos tribunais superiores em recursos de índole extraordinária.
Na mesma linha seguiu o ministro Edson Fachin, para quem a execução antecipada da pena é legítima a não ser que se confira efeito suspensivo ao recurso cabível contra a decisão de segunda instância. É inviável, no seu entendimento, impor que se aguarde a prisão até que “o último recurso da última corte constitucional tenha sido examinado”.
Também alinhado a decisões anteriores, o ministro Luís Roberto Barroso acompanhou a divergência e ressaltou que o requisito para a imposição de prisão não é o trânsito em julgado, mas a ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial. Não se confunde, portanto, o inciso LVII do art. 5º, segundo o qual não é possível considerar alguém culpado até o trânsito em julgado, com o inciso LXI, que trata da garantia de que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente. Condicionar a execução da pena ao trânsito em julgado serve apenas para incentivar a interposição de recursos protelatórios e contribui para a promoção da impunidade.
A ministra Rosa Weber, por sua vez, votou pela procedência das ações e, portanto, pela proibição da execução penal prévia ao trânsito em julgado. Após destacar que, até este momento, aderiu às decisões anteriormente proferidas pelo tribunal em respeito ao princípio da colegialidade, afirmou que o julgamento de mérito das ações constitucionais é o momento adequado para fazer valer sua interpretação de que a Constituição Federal garante a presunção de inocência até que a sentença condenatória tome caráter definitivo. A ministra ressaltou como um ponto capital, no seu entender, a diferença entre a prisão de natureza cautelar e a prisão com propósito punitivo, que só pode ser imposta quando formada definitivamente a culpa; qualquer prisão antes disso só pode ser decretada se presentes as circunstâncias características da cautelar.
O ministro Luiz Fux manteve sua orientação e divergiu do relator. Enxerga como viável a execução antecipada da pena. Mencionou diversos exemplos de graves crimes cujos autores estariam soltos se se exigisse o trânsito em julgado, não parecendo razoável impor limitação tão severa à imposição da consequência penal. A presunção de inocência não tem relação com a possibilidade de execução da pena após o pronunciamento de segunda instância, mas decorre do fato de que outrora cabia ao réu provar sua inocência, o que atualmente não ocorre, tendo em vista que o ônus recai na acusação. Isto quer dizer que até o trânsito em julgado o réu tem a possibilidade de contestar a acusação. Mas trata-se de uma presunção que admite prova em contrário, e à medida em que o processo tramita ocorre uma mitigação da mesma presunção. Esgotadas as instâncias ordinárias, há declaração de que o réu é culpado e sua prisão é necessária, seguindo-se, com isso, outras regras que relativizam a necessidade do trânsito em julgado, como a Lei Complementar 135/10 (“Lei da Ficha Limpa”). Concluiu destacando que a modificação da jurisprudência do tribunal é injustificável e prejudicial à segurança jurídica.
Votando em seguida, o ministro Ricardo Lewandowski manteve o tom de suas decisões anteriores sobre o tema, ou seja, considerou inconstitucional a execução antecipada da pena. Para o ministro, hão de ser consideradas as circunstâncias do sistema judiciário brasileiro, extremamente congestionado e disfuncional, com metas de produtividade cada vez mais severas, em que a possibilidade de erros na primeira e na segunda instâncias se multiplica. Nestas circunstâncias, a presunção de inocência como óbice à execução antecipada da pena serve como garantia de que inocentes não sejam submetidos a penas ilegítimas. Ainda segundo o ministro, a execução antecipada é um retrocesso que contraria frontalmente a vontade do legislador constituinte originário no sentido de que não é possível restringir a liberdade pela aplicação da pena antes da formação cabal da culpa.
A ministra Cármen Lúcia manteve seu convencimento já exposto nos julgamentos anteriores. Segundo a ministra, a disposição constitucional de que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória deve ser lida em conjunto com outros dispositivos, como o inciso LXI do art. 5º, segundo o qual ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Isto revela que pode haver prisão independentemente do trânsito em julgado, bastando a obediência ao devido processo legal, que se cumpre com o esgotamento da matéria de fato nas instâncias ordinárias. Exigir o trânsito em julgado para a execução da pena desvirtua a ordem processual na medida em que confere a recursos de índole extraordinária um efeito suspensivo que não lhes é característico, embora seja possível, excepcionalmente, quando presente alguma justificativa, o que, aliás, afasta alegações de que direitos fundamentais seriam necessariamente ofendidos com a execução antecipada. A ministra fez, ainda, referência à necessidade de segurança jurídica e de efetividade do Direito Penal, que, no caso, se afirmam pela certeza da aplicação da pena e pela imposição de limites para que alguns indivíduos não se valham do intrincado e sofisticado sistema recursal para adiar indefinidamente as consequências de seus atos criminosos.
O ministro Gilmar Mendes modificou sua orientação – como, aliás, já vinha sinalizando – para considerar inconstitucional a execução antecipada da pena. O ministro iniciou sua explanação elencando situações em que o tribunal modificou sua própria orientação a respeito de questões de fundamental importância, bem como mencionou situações não menos relevantes em que o tribunal foi obrigado a decidir sobre a recepção de normas anteriores à atual ordem constitucional. O ministro seguiu seu voto afirmando que desde os primeiros debates sobre a matéria demonstrou sua inquietação a respeito da determinação automática de execuções penais após o julgamento em segunda instância, sem a devida individualização frente aos casos concretos. Na sua acepção, mudanças nos contextos normativo e fático subjacentes ao debate fizeram com que sua posição evoluísse diante da necessidade de proteção real do princípio da presunção de inocência. O que o tribunal admitiu nos julgamentos anteriores foi a possibilidade de que a pena fosse executada após a decisão de segunda instância, mas não a obrigatoriedade de que isso fosse feito. A imposição indiscriminada da execução antecipada e a decretação de prisões preventivas que, na sua visão, assumiam caráter permanente e eram decretadas sem fundamentação concreta fizeram com que se enfraquecesse sua esperança de que os tribunais de segunda instância seriam capazes de evitar abusos. Considerou, portanto, impossível a execução da pena até que sobrevenha o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
O ministro Celso de Mello também votou pela inconstitucionalidade da execução antecipada da pena. Iniciou afirmando que não se há de confundir o princípio da presunção de inocência com óbice às atividades investigativas e jurisdicionais contra a prática de crimes. O princípio revela uma garantia de todos os cidadãos contra a arbitrariedade e não impõe nenhuma barreira à punição decorrente do devido processo legal. Após ressaltar os efeitos nefastos da dominação da atividade política pelos atos de corrupção amplamente divulgados nos últimos anos, destacou que todos os ministros da corte, independentemente de sua orientação a respeito da necessidade do trânsito em julgado, são comprometidos com a repressão da prática da corrupção governamental e com a efetividade da justiça penal. A respeito especificamente do mérito das ações, o ministro assentou que o princípio da presunção de inocência impede que o poder público trate o réu como culpado até que a decisão condenatória se torne definitiva, e certamente a execução da pena tem como pressuposto a formação da culpa. Apontou ainda que não é possível relacionar a execução antecipada da pena a uma forma de evitar a impunidade em virtude da interposição de recursos de natureza extraordinária, destacando que restringir o trâmite desses recursos não é um problema a ser resolvido pelo Judiciário, mas pelo Legislativo, que pode limitar as possibilidades recursais. Também afirmou que o fato de impedir a execução da pena antes do trânsito em julgado não significa que ninguém pode ser preso, pois há situações que, em plena consonância com a ordem constitucional, autorizam as prisões cautelares, bastando que se cumpram os requisitos característicos desses meios restritivos de liberdade. Por isso, votou pela procedência das ações para considerar inconstitucional a execução da pena após a condenação na segunda instância.
Finalmente, o ministro Dias Toffoli modificou sua orientação anterior para votar pela procedência das ações e, consequentemente, pela inconstitucionalidade da execução antecipada da pena. Segundo o ministro, a redação do art. 283 do CPP é clara ao dispor que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. O dispositivo, considerado compatível com a Constituição Federal, não trata de considerar alguém culpado somente após o trânsito em julgado, mas, sim, estabelece limites à própria prisão, que só pode ser imposta em flagrante delito, em prisão cautelar ou em decorrência de sentença condenatória definitiva. Isto, segundo os termos do voto, revela que a vontade do legislador, que impôs esta redação ao art. 283 em 2012, é de que a execução da pena se torne possível apenas com a formação definitiva da responsabilidade penal.
Com a decisão, portanto, voltamos à situação em que estávamos até o julgamento do habeas corpus 126.292: a prisão para execução da pena só pode ser determinada após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Qualquer prisão antes disso deve ser fundamentada, inicialmente, no artigo 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria; ou ainda em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares. A isto se deve somar o disposto no art. 313, segundo o qual a prisão preventiva é cabível: nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos; se o agente tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado; se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Vale ainda uma observação final a respeito da eficácia da condenação proferida pelo Tribunal do Júri, tendo em vista que, na conclusão de seu voto, o ministro Toffoli destacou que o julgamento realizado agora pelo STF não deveria abranger as decisões tomadas pelo Conselho de Sentença nos crimes dolosos contra a vida.
Esta observação se alinha a uma decisão proferida em 2017 pela 1ª Turma do tribunal quando do julgamento do habeas corpus HC 118.770. Na ocasião, o ministro Luis Roberto Barroso, que teve sua tese acolhida por maioria, destacou que “[…] a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação pelo Tribunal do Júri, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri, e o Tribunal não pode substituir-se aos jurados na apreciação de fatos e provas (CF/88, artigo 5º, XXXVIII, c), o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar (CF/88, artigos 5º, caput e LXXVIII e 144). Assim, interpretação que interdite a prisão como consequência da condenação pelo Tribunal do Júri representa proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas”.
Partiu-se da premissa de que, face à soberania que é inerente ao Tribunal do Júri, decorrente de expresso texto constitucional (art. 5º, inc. XXXVIII, “c”), deve ser admitida a imediata prisão do réu, assim que condenado pelo tribunal popular. Vê-se, portanto, que a execução antecipada da pena no caso dos crimes dolosos contra a vida tem fundamento mais amplo do que a execução nos demais casos, pois baseada no princípio constitucional de que a decisão tomada pelos jurados não pode ser desrespeitada. Mas, como se tratou de uma decisão tomada por maioria no âmbito restrito de uma das turmas do tribunal, é muito provável que o tema volte a julgamento no plenário.