1 – INTRODUÇÃO
Com o advento da Lei n. 13.964/2019, comumente denominada “Pacote Anticrime”, a ação penal relativa ao crime de estelionato sofreu significativa alteração, passando a exigir via de regra representação por parte do ofendido (ou de quem possui qualidade de representá-lo ou, ainda, do sucessor).
Em que pese a alteração legislativa, a ação penal atinente ao crime de estelionato permanece de natureza pública, cabendo ao Ministério Público manejá-la.
Todavia, com a mudança, a admissibilidade da denúncia dependerá doravante de uma condição específica de procedibilidade, consistente na representação, salvo se a vítima for a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz, a teor do §5º do artigo 171 do Código Penal, quando, então, a ação será pública incondicionada.
Certamente, a principal discussão que essa mudança provocará no meio jurídico é sobre sua incidência ou não de forma retroativa nas persecuções penais em curso.
Nesse singelo artigo, pretendemos expor nosso entendimento, colaborando com a comunidade jurídica.
2 – NORMAS PROCESSUAIS PENAIS e O DIREITO INTERTEMPORAL
As normas atinentes a ação penal possuem dupla previsão legal, tendo assento seja no Código Processo Penal, no artigo 24 e sgs, seja no Código Penal, especialmente nos artigos 100, §1º e 103, possuindo, destarte, natureza processual penal e, como não, de direito material.
As normas de natureza processual penal são regidas no direito intertemporal pela regra insculpida no artigo 2º, do Código Processo Penal (CPP), que reza “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.
A incidência das leis processuais penais no tempo (direito intertemporal) rege-se pelo princípio “tempus regit actum”, conforme estabelece o artigo 2º do CPP, de tal modo que a lei nova aplica-se de imediato, regulando o restante da persecução penal em curso, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.
O artigo 2º do CPP não faz distinção entre normas processuais, de outro lado, doutrina e jurisprudência já estabeleceram uma subdivisão, de maneira que, a depender de seu conteúdo e os reflexos ao exercício do “jus puniendi”, as normas processuais podem ser classificadas em genuinamente processuais ou processuais materiais (mistas ou híbridas).
Nas lições de Renato Brasileiro de LimaLima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: Volume único – 6ª edição. Salvador: JusPodivm, 2018, as normas genuinamente processuais versam sobre o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da pena, cuidando especialmente dos ritos (procedimentos), dos atos processuais e das técnicas do processo, aplicando a elas a regra prevista no artigo 2º do CPP. Por sua vez, as normas processuais materiais, mistas ou híbridas dispõem sobre o conteúdo da pretensão punitiva.
Uma corrente de caráter mais ampliativoNesse sentido: Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy apud Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: Volume único – 6ª edição. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 96 sustenta que as normas processuais materiais “são aquelas que estabelecem condições de procedibilidade, meios de prova, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução de pena e todas as demais normas que produzam reflexos no direito de liberdade do agente”.
Na jurisprudênciaCom esse entendimento: STF, 1ª Turma, HC 79.390/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 19/10/1999, Dj 19/11/1999 e, igualmente na doutrina, prevalece o entendimento de que em relação as normas processuais materiais, o critério de direito intertemporal a elas aplicáveis serão os princípios que regem a lei penal no tempo, quais sejam, da ultratividade e a retroatividade da lei mais benigna.
Oportuno trazer à baila que o Supremo Tribunal FederalSTF, Pleno, ADI 1.719-9, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 18/06/2007, Dje 02/08/2007 (STF), ao apreciar a aplicabilidade dos institutos despenalizadores da Lei 9099/1995 e da nova redação do artigo 366 do CPP, alterado pela Lei 9271/1996, fixou a tese de que deveria ser observado o princípio disposto no artigo 5º, inciso XL da CF (a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu), rotulando-as como normas de caráter processual penal de índole híbrida.
3 – NATUREZA DA NORMA QUE EXIGE REPRESENTAÇÃO PARA ADMISSIBILIDADE DA DENÚNCIA
Feitas essas breves considerações, resta induvidoso de que o instituto da representação é uma norma processual de caráter material, pois, além de possuir dupla previsão (CPP e Código Penal), constitui uma condição específica de procedibilidade, sendo certo que, sem ela, sequer se pode iniciar um inquérito (artigo 5º, §4º do CPP). Não bastasse isso, se não exercida no prazo estabelecido no artigo 38 do CPP, decaíra o direito de representação, ocasionado a extinção da punibilidade (artigo 107, IV do Código Penal).
Para Renato Brasileiro de LimaIbidem, 8ª edição, p. 366 “ao transformar o delito de estelionato em crime de ação penal pública condicionada à representação, pelo menos em regra, o ‘Pacote Anticrime’ assume nítida natureza penal, já que cria, em favor do acusado, nova causa extintiva da punibilidade: decadência, pelo não exercício do direito da representação no prazo legal de 06 (seis) meses”.
Algo semelhante ocorreu com o advento da Lei 9099/1995, ocasião em que houve a alteração da ação penal dos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas, passando a exigir representação (artigo 88). Na oportunidade, a própria Lei previu:
(…) nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação pena pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.
Assim, naquela época, nas persecuções penais em curso, foi necessário notificação da vítima para oferecer representação, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência.
Ao contrário da Lei n. 9099/1995, que fez expressa previsão sobre a necessidade de representação para o prosseguimento das persecuções penais em curso, o silêncio da Lei n. 13.964/2019 sobre tal questão não se apresenta como empecilho para a aplicação retroativa da mudança ocorrida nos crimes de estelionato, pois, nitidamente, favorece ao acusado, na medida que pode ensejar uma causa de extinção da punibilidade: decadência.
Conquanto abalizada doutrina, representada pelo renomado professor Rogério SanchesCunha, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei n. 13.964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEP. Editora JusPodivm, 2020, sustenta que, oferecida a denúncia, não caberia a incidência da mudança, tratando-se de ato jurídico perfeito, não se poderia chegar a outra ilação senão de que a mudança da ação penal do delito de estelionato (e de suas formas equiparadas) incidirá nas persecuções penais em curso de forma retroativa, posto que seus efeitos refletem no “jus puniendi”, dificultando a “persecutio criminis”, na medida que o Estado não poderá, de ofício, sequer determinar uma investigação e, muito menos, propor uma ação penal.
Não por isso, salienta-se que a incidência retroativa da norma se restringe aos processos criminais em curso, ressalvando a coisa julgada. Nesse sentido, diz Rômulo de Andrade Moreirahttps://www.justificando.com/2020/02/11/o-crime-de-estelionato-depende-de-representacao/ - acesso em 06/04/2020, “contendo a norma caráter também processual (condição de procedibilidade), só poderia ser aplicada a processo não encerrado”. Na mesma linha caminha as lições do professor Leonardo Barreto Moreira Alveshttps://www.migalhas.com.br/depeso/99401/a-acao-penal-nos-crimes-contra-a-dignidade-sexual-apos-a-lei-12015-09 – acesso em 09/04/2020 ao tratar sobre a alteração na ação penal dos crimes contra a dignidade sexual provocada pela Lei n. 12.015/2019:
(…) Claro que se o crime era de ação penal pública incondicionada e continua submetido a esta espécie de ação penal, não haverá qualquer diferença, permanecendo, pois, tudo como está. Entretanto, a dúvida surge se o crime era de ação penal pública incondicionada e passou a estar submetido a ação penal pública condicionada à representação do ofendido. Nesta hipótese, há melhoria na situação do agente delitivo, pois ele poderá agora ser beneficiado pelo instituto da decadência, que provoca a extinção da punibilidade. Por conta disso, entende-se que a lei 12.015/09 deverá retroagir. Assim, se foi iniciada a ação penal, a vítima deverá ser chamada para oferecer a representação, caso já não tenha feito. Entretanto, deve-se advertir que, se já houver o trânsito em julgado da decisão proferida ao longo da ação penal, não será possível a retroatividade da lei 12.015/09. A retroatividade de uma lei após o trânsito em julgado de uma decisão somente é possível se aquela for de caráter exclusivamente penal (grifei).
4 – PRAZO PARA O EXERCÍCIO DA REPRESENTAÇÃO (CONDIÇÃO ESPECÍFICA DE PROCEDIBILIDADE)
Sobre a questão do prazo para o exercício do direito de representação nos processos penais em curso, diferente da Lei 9099/1995, nada disse a nova Lei.
Na ausência de previsão específica e não sendo o caso de aplicação do artigo 38 do CPP, uma vez que antes tal condição específica da ação penal não era exigida, o que provocaria inúmeras extinções pela decadência, o mais indicado, para suprir esta lacuna, é a aplicação analógica do contido no artigo 90 da Lei n. 9099/1995, prazo de 30 dias, contado a partir da notificação da vítima (ou de seu representante legal ou sucessores).
Ousamos discordar do ilustrado professor Renato Brasileiro de Lima, cujo pensamento é no sentido de que se deveria aplicar, subsidiariamente, o prazo decadencial de seis meses, oriundo do artigo 38 do CPP e artigo 103 do CP, contado da notificação do ofendido, pois, com isso, estar-se-ia, na verdade, criando uma terceira norma, até então não prevista, utilizando partes de outras normas, em nítida usurpação da função legislativa.
Aplicada por analogia o artigo 90 da Lei n, 9099/1995, notificada a vítima, ao final do prazo, caso não seja juntada a representação será declarada a extinção da punibilidade pela decadência. Na hipótese do ofendido (ou outros legitimados) não ser encontrado, aguardar-se-á o transcurso do prazo prescricional, já que, não tendo sido possível a notificação, não há falar-se em decadência.
Uma outra questão que pode ocorrer no curso do processo é a desclassificação do crime inicialmente imputado para o delito de estelionato. Neste caso, deve ser exigida a representação, nos termos acima expostos, sob pena do feito não ter prosseguimento por faltar uma “condição de procedibilidade superveniente.”
Posto isso, em relação às ações penais em curso, o Juiz ou Tribunal deve suspender o procedimento, em razão da falta de uma “condição de prosseguibilidade” para a ação penal, e determinar que a vítima (ou seu representante legal ou seus sucessores) seja notificada para, querendo, oferecer a representação, uma vez que se trata de uma norma de caráter processual penal material e mais benéfica, exigindo-se a sua aplicação para os processos pendentes.
5 – FORMALIDADES DA REPRESENTAÇÃO
A propósito, como bem pontua Guilherme de Souza NucciNucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 9ª ed. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, “a representação não exige rigorismo formal”, basta que, nas declarações prestadas no inquérito, por exemplo, fique bem claro o seu objetivo de dar início à ação penal, legitimando o Ministério Público a agir.
Pontua-se que já se considerouNa dicção da 1ª Turma do Supremo, para representação, não exige formalismo, sendo suficiente a manifestação inequívoca de que se inicie o processo contra o acusado: STF, 1ª Turma, RHC 65.549/RS, Rel. Min. Moreira Alves, j. 22/03/1988, Dj 17/06/1988. Para o STJ, a simples narração da violência sexual efetuada pela vítima à autoridade policial e reproduzida em juízo, com riqueza de detalhes, pode ser tida como verdadeira representação, já que esta prescinde de rigor formal: STJ, 5ª Turma, HC 89.475/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 28/08/2008, Dj 22/09/2008 boletins de ocorrência e declarações prestadas na polícia como representação.
Ainda, nas lições do eminente doutrinador NucciIbidem, p. 203:
(…) Porém, apresentada a representação contra um dos coautores ou partícipes, autoriza o Ministério Público a oferecer denúncia contra todos os agentes. Decorre tal situação da obrigatoriedade da ação penal pública, razão pela qual não se pode escolher qual dos vários coautores merece e qual não merece ser processado. Parte da dourina invoca a indivisibilidade da ação penal para justificar tal situação, embora prefiramos sustentar a existência da obrigatoriedade. O promotor, dispondo de autorização para agir contra um, em crime de ação pública condicionada, está, automaticamente, legitimado a apurar os fatos e agir contra todos.
Certo é que o mais seguro é colher a expressa intenção do ofendido por termo, entretanto, não se pode despreza, especialmente nas ações penais em curso, até porque não era exigido representação, as declarações prestadas pela vítima durante a persecução penal, desde que demonstre de forma inequívoca o interesse na responsabilização criminal do agente.
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por tudo o que foi exposto, conclui-se que, a partir da vigência da Lei 13.964/2019, para o início da persecução penal contra crime de estelionato, salvo nos casos em que o ofendido for a Administração Pública, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental ou maior de 70 anos de idade ou incapaz, exige-se representação do ofendido ou de quem o represente, sem a qual sequer deverá haver instauração de inquérito policial.
Com relação as persecuções penais em curso, sendo a exigência de representação norma processual penal de índole material e mais benéfica, acaso a vítima não tenha deixado claro o interesse da responsabilização criminal do(s) agente(s), caberá a autoridade policial ou a autoridade judiciária, se já recebida a denúncia, notificar a vítima para representar, no prazo de trinta dias, contados da notificação, ficando os autos suspensos até o pronunciamento da vítima ou o transcurso do prazo.
Instada a manifestar, se vítima representar pela responsabilização criminal do(s) agente(s), a persecução penal prosseguir-se-á regularmente seu curso.
De outro lado, se a vítima expressamente posicionar-se pelo desinteresse no prosseguimento da demanda ou o prazo de trinta dias transcorrer “in albis”, operará a extinção da punibilidade, com o arquivamento dos autos.
Por fim, não sendo o ofendido encontrado, aguardar-se-á o transcurso do prazo prescricional.
7 – REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Cunha, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei n. 13.964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEP. Editora JusPodivm, 2020.
Lei n. 13.964/2019 (http://www.planalto.gov.br/);
Lei n. 9099/1995 (http://www.planalto.gov.br/);
Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: Volume único – 6ª edição. Salvador: JusPodivm, 2018;
Moreira, Rômulo de Andrade. artigo: https://www.justificando.com/2020/02/11/o-crime-de-estelionato-depende-de-representacao/
Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 9ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.